terça-feira, 29 de outubro de 2013

CAFÉ COM VOLTAIRE



Não raras vezes algo curioso acontece comigo, acredito que com vocês também. Vira e mexe me pego em reflexões sobre em que medida somos livres. Ou mesmo se efetivamente o somos. Existe um sem número de autores que já trataram do tema e, seus livros, se reunidos, com certeza comporiam bibliotecas inteiras. Não nego isso. Sei que o tema não é nada original. Mas isso não importa.

Somos livres e presos, ao mesmo tempo. Foi isso que minha extremamente limitada razão foi capaz de deduzir. Nossa experiência de liberdade é exercida somente no plano concreto, do real, de vivências efetivas. E são esses os planos que limitam a nossa liberdade.

Há, portanto, não uma exclusão, como em princípio soa intuitivo, entre liberdade e limitação a ela, mas sim uma relação de condição. A liberdade se condiciona a determinados limites, pois sem eles ela simplesmente não seria realizável, vivível enquanto experiência. Tentarei ser mais claro. Pense que alguém é infinitamente livre. Ser “infinitamente livre” é uma construção textual apenas, já que como se é livre se há um infinito universo de possibilidades, de decisões a serem tomadas?

É impossível ser infinitamente livre na medida em que a possibilidade de escolha de uma entre infinitas possibilidades é nenhuma. Sei que pode parecer bastante abstrato e até confuso, mas se prendam na ideia de uma liberdade infinita. A partir daí, notem que se é infinita, qual caminho se irá escolher? É possível dizer “qualquer um”, mas um dentre quais, se eles são infinitos? O que percebi, raciocinando dessa maneira, é que UMA EXPERIÊNCIA DE LIBERDADE INFINITA É ABSURDA. Essa reflexão me permitiu concluir que A LIBERDADE COEXISTE NECESSARIAMENTE COM SEUS LIMITES. Nesse ponto, me recordei do conceito sartriano de facticidade, e acho que se trata exatamente desses limites que, paradoxalmente, permitem a experiência da liberdade.

Partindo dessa constatação, a de que a liberdade é inevitavelmente limitada, penso no grande número de pessoas insatisfeitas com a liberdade que possuem, exatamente por ser essa necessariamente limitada. Isso me fez lembrar uma frase de Voltaire, que quero compartilhar com vocês: “É ESTRANHO QUE OS HOMENS NÃO ESTEJAM CONTENTES COM ESSA MEDIDA DE LIBERDADE, ISTO É, COM O PODER QUE RECEBERAM DA NATUREZA DE FAZER, EM VÁRIAS SITUAÇÕES, O QUE ELES QUEREM; OS ASTROS NÃO TEM ESSES PODER.”. Depois dessa lição de François-Marie Arouet, deveríamos pensar muito antes de nos queixar de nossa eventual insuficiência de meios...

Essa história do absurdo de uma liberdade infinita, também me fez pensar sobre o livre arbítrio. Como já disse, não possuo uma razão excepcional, minha mente é bastante simples, por isso não pretendo propor verdades absolutas, até porque, mesmo partindo da minha mente rústica, sei que elas não existem. O livre arbítrio seria também apenas uma construção linguística, uma ilusão? A boa e velha SINCRONICIDADE me presenteou com uma reflexão singular de Voltaire, sim, ele de novo! E eu que não o imaginava como filósofo! Vejam só: “SERIA MUITO SINGULAR QUE TODA A NATUREZA, QUE TODOS OS ASTROS OBEDECESSEM A LEIS ETERNAS E QUE HOUVESSE UM PEQUENO ANIMAL DE UM METRO E MEIO DE ALTURA QUE, A DESPEITO DESSAS LEIS, PUDESSE AGIR SEMPRE COMO LHE AGRADASSE, MOVIDO APENAS POR SEU CAPRICHO”. Genial, não? Eis nossa belíssima tragédia: nos consideramos livres, uma liberdade, porém, que não se exerce infinitamente, é circunscrita, necessariamente delimitada. Mas, a nossa vontade de agir, o que nos impele a escolher este e não aquele caminho, será completamente livre? Em que medida as leis da natureza poderiam nos condicionar a agir de possíveis modos?

O que me levou a escrever esse texto? Até que ponto esses questionamentos necessariamente me ocorreriam? Não ocorrem apenas em função das minhas experiências de vida? Ou haveria algo inato, tal como o fato de eu ser libriano e, segundo a astrologia, os nascidos em libra tenderem a ser reflexivos, tais como todos os nascidos em outras das três casas pertencentes ao elemento ar? Voltaire certamente repudiaria essa última sugestão. Eu não me considero capaz de solapá-la tão peremptoriamente. Sou hesitante, outra característica típica dos librianos...


Se, como dizem os dialéticos -  tudo é e não é ao mesmo tempo -, quanto à liberdade, somos e não somos livres. Independente de sermos ou não efetivamente livres, o que importa é que algo somos. 








quinta-feira, 17 de outubro de 2013

SENTE-SE



      Fazia um belo dia de Sol em Ourinhos. Eu o vivia sentado num banco. Mais de meio dia já se passava e a luz ganhava em encanto. Um amarelo vivo banhava a calçada e a relva. O sabiá cantava com força seu tempo de amor. Pensava na impetuosidade da vida, na energia das criaturas, na beleza da existência, a despeito da aparente ausência de sentido ou finalidade.

      Podia ficar por ali mais uma hora, uma hora e meia. Tomaria o ônibus para São Paulo só às três e meia da tarde. O bem-te-vi ganhava do sabiá na séria brincadeira de quem cantava mais forte, no instante em que eu fechava os olhos para melhor sentir a luz do sol e o vento fresco que fazia música nas folhas das palmeiras ao mesmo tempo em que carregava o aroma das flores do ipê amarelo, todo florido.

     A araponga brincava com o coquinho no bico. Armava voar e desistia, cansada. As rolinhas voavam de e para todos os lados, fazendo pingos de sombra. Entre essas, uma diferente surgiu e me chamou a atenção. Era a sombra de um homem, que caminhava em minha direção. Foi o suficiente para que eu o olhasse, e despercebesse o espetaculozinho de luz, calor, plantas e pássaros que se fazia até então. O que vi foi um homem velho, pardo-bronzeado, de rala-barba-branca e cabelos ralos. Vestia-se dignamente, como os antigos gostam de se vestir. Ao aproximar-se, notei que estava sujo e com a roupa rasgada em algumas dobras, porém. Me acenou com a cabeça e se sentou ao meu lado esquerdo. Eu devolvi o aceno, sem dizer palavra.

      Não tive o desejo de me levantar dali, apesar de o velho não cheirar bem. Pensava que isso poderia ofendê-lo, já que naquela praça havia outros bancos vazios e ele havia feito questão de se sentar ao meu lado. O cheiro já não estava tão ruim, cheirava a tabaco. Ele havia tirado do bolso um maço de Derby, acendido um e oferecido para mim. Recusei, dizendo que não fumava, mas que muito agradecia. Tentei voltar à contemplação, caçando ideias em minha mente, reatando pensamentos. O que vinha, no entanto, eram possíveis diálogos que eu poderia propor com aquele senhor, os quais foram prontamente sufocados pela conclusão de que ele parecia querer ficar calado e, como eu, observar o dia.

        Por curiosidade, somente, quis olhar melhor sua face. O nariz adunco, pronunciado, sob uma pele bronze e esturricada, um rosto como digno monumento a representar nossa organicidade em face da totalidade da vida. Das forças inorgânicas que nos possibilitam e nos terminam, simplesmente, tragicamente. Suas têmporas ossudas pareciam anunciar que ali se tinha um homem que, apesar de velho, era forte. Ele tragava a fumaça de seu tabaco, sem demonstrar prazer ou dor. A expressão, imutável. O olhar parecia enxergar longe ou não enxergar nada. Era a quietude.

     Enquanto passava meu olhar sobre o chão, observei seus sapatos.  Encardidos de terra vermelha, de tão gastos e sujos tinham um aspecto de singularidade. Como se fossem feitos somente para ele. Não me fizeram pensar em produções industriais de massa, mas sim o quanto aquele homem devia de ter andado, perambulado em busca de quê? De nada? De tudo?

     No instante em que pensava sobre suas andanças, outra sombra humana surgiu. Caminhava rumo ao nosso banco. Olhei para ele, e vi que não retribuía o olhar, apenas caminhava. Igualmente velho, era mais claro, porém, e suas roupas pareciam em melhor estado. Quase imberbe, os cabelos brancos eram curtos, mas começavam a cachear. Nos cumprimentou com um aceno de cabeça, sentou-se ao meu lado direito. Seu cheiro também não era agradável, mas também não me incomodou. Resolvi permanecer ali. Aquela pele clara ganhava em vermelho-laranja, marcas, rugas, chagas. Quanta luz já não havia se misturado a ela? O quanto somos diferentes da luz?
           
 Esse senhor estava usando paletó. O vento frio, ainda que em dia de sol forte, o justificava. Sem nada dizer, levantou o braço direito, e com a mão esquerda fuçava bolsos. Logo pude notar que, de seu velho paletó, a mão esquálida e cheia de veias colhia uma garrafinha com dois pequenos copos na boca. Trêmulo, encheu um dos copos e me olhou. Seus olhos azuis eram pálidos, como o céu em dias de estiagem. Eram bondosos tanto quanto tristes. Disse que não bebia, mas que agradecia. Então se esticou e ofereceu a bebida ao outro homem. Este aceitou, sem enunciar palavra, mas mediante gestual, agradeceu. Numa talagada, esvaziou o copo e o colocou na beirinha do banco. Do seu maço de cigarros, sacou um, e o ofereceu ao do paletó, o qual igualmente agradeceu a oferta, através de gesto. Ambos beberam, ambos fumaram.

Não ouvi uma sequer palavra deles dita. Não havia movimentos bruscos. Não havia medo, pressa, ansiedade, cólera. Se nada diziam, era porque nada precisava ser dito. Como se tudo já houvesse sido falado e nada resolvido. O que havia era a velhice, a dor, o martelar incessante do passado, os quais, pensei, tornavam-se menos insuportáveis em companhia. Nem precisava conversa, a simples presença era o que permitia comungar da solidão, e dizer o indizível, sem balbuciar palavra.

O relógio acusava três e vinte e cinco. Do banco tive de levantar. Nem cinco passos dei, olhei para trás e os velhos permaneciam nas mesmas posições. Fiz um aceno com a mão. Eles fizeram o gesto de sempre, aquele com a cabeça. Um bem-estar me acometeu quando a ternura por eles fez em mim uma viva sensação. O sentido das coisas não se diz, não há palavra. Sente-se.










sexta-feira, 26 de julho de 2013

OLHOS AZUIS CINZA



Era uma manhã fria e eu custei a levantar. Tinha de, porém. Era o dia de fazer o exame da proficiência, uma bagaça necessária para o mestrado. A prova seria na cidade universitária, e era domingo.

Poucas linhas de ônibus e, se não bastasse, começou a chover. Peguei o primeiro busão que passaria no metrô, e resolvi chegar até a USP pela linha amarela. Metrô lento, e uma vez na estação Butantã demorou até que eu descobrisse de onde saía o ônibus para o campus, isso porque sou tão lento quanto o transporte de São Paulo, Capital.

As demoras se somaram e eu estava quase atrasado. Isso me forçou a, assim que descesse do ônibus, correr até o prédio onde seria aplicada a prova. Lá chegando, a sala estava cheia, e eu, suado.

Até aí, tudo bem. Deslocar-se em São Paulo aos domingos quando não se tem carro pode ser fora de mão, como dizem. O importante é que cheguei a tempo. Não imaginava que tão a tempo, isso porque o cara que ficou de aplicar a prova cismou com o forro da sala, e deixou de nos dar o caderno de questões até que resolvesse a parada. Havia uma placa meio solta, e o vento forte lá de fora estava formando uma corrente de ar. O japa que estava logo abaixo da placa parecia assustado. Chamaram um servente, que apenas olhou e disse que era assim mesmo. Superada essa questão, aplicou-se a prova. Aí não ficou mais tudo bem...

Havia realmente me preparado para aquele exame, mas a prova estava absurdamente difícil. Em casa tinha feito as últimas três ou quatro provas e me saí bem. Não fiquei nervoso, nem nada, mas me deu um quê de desânimo. Apesar disso, fiz tudo até o fim, mas não saí confiante, nem desconfiante, pois vai saber, e se, de repente, eu passei?

Resolvi a questão aceitando o fato de que, na pior das hipóteses, prova tem sempre e todo o ano. Com isso na mente, caminhei até o ponto de ônibus mais próximo. Antes que lá chegasse, percebi uma garota de traje punk falando ao telefone. Ao me aproximar mais, notei seu sotaque, era soteropolitano. Pensei no Camisa de Vênus, e ela parecia ser uma versão mulher do Marcelo Nova. A mina não largou o telefone, continuava tagarelando com alguém que parecia ser uma amiga ou confidente, absolutamente irrelevante.  O que me ferrou é que eu estava sem fone de ouvido (havia-o estragado em casa quando saí com pressa) e tive de ouvir toda aquela ladainha sobre aceitação e comportamento sem sentido dos homens.

Do nada, surgiu uma figura que se sentou ao meu lado. Era um cara meio coroa, na casa de uns 38, 40 anos. Um tanto alto, um tanto magro, cabelos loiros grisalhos e olhos azuis. Eram azuis cinza. Só percebi o quão cinza eram seus olhos no instante em que se virou para mim e perguntou se os ônibus realmente passariam. Começamos a conversar, e em poucos minutos deu pra notar algumas suas excentricidades, na medida em que se abria sem ao menos saber meu nome.

O cara me disse que fez a prova de proficiência, mas que não havia estudado nada. Saíra de Bragança Paulista, e não iria desistir caso não passasse. Um professor do cursinho que frequentava lhe disse para jamais desistir. Havia dito a sua esposa que faria, custasse o que custasse, o mestrado. Enquanto falava sem parar, chegaram mais pessoas no ponto. Elas davam uma olhada para nós e logo se davam conta da minha sorte.

O ônibus chegou e subimos. Sentei e a figura sentou-se, é claro, ao meu lado. Continuou falando sobre estudos, carreira, anseios, planos. Eu apenas concordava, monossilabicamente. Quando cansava dos monossílabos, entoava o seguinte dizer: “no que faz muito bem”. O que realmente me espantava, nessa altura, não era mais o fato de o personagem ter se aberto sem saber quase nada sobre mim, mas sim a sua incapacidade de perceber a minha falta de interesse naquela conversa. Era realmente espantoso.

Nas ruas da cidade universitária, o motorista do ônibus esbanjava seu espírito arrojado, aventureiro. Fazia curvas correndo uns 80 por hora, e a força centrípeta agia sobre nós. Diante disso, meu parceiro reclamava. Apesar do desconforto das curvas bruscas, achei bom que de repente se interessasse por outra coisa e se preocupasse com o motorista. Mas, rapidamente, voltou a sua explanação sobre carreiras jurídicas. Tive a certeza que a viagem até a estação Butantã seria lenta.

Demorou, mas chegou. Uma vez na estação, porém, foi que me dei conta de que ali só havia um sentido para os trens, de modo que provavelmente aquele cara iria me acompanhar. Na verdade, eu já estava preparado para isso, e resolvi deixá-lo a seguir e a falar. Eu permanecia nos monossílabos.

No vagão do trem da linha amarela foi que a coisa ficou feia. Ele me perguntou sobre o que eu fazia, e eu disse. Na minha resposta citei minha passagem por um gabinete de desembargador da área criminal, e isso foi a fagulha para o incêndio. Romualdo (naquele momento já sabia seu nome, pois acontecera de o sujeito referir-se a si mesmo e chamar-se pelo nome ao reproduzir diálogos que travara) se empolgou e disse que “atuou” como advogado criminalista. Bom, até aí, nada constrangedor. Mas, sem que eu levantasse a bola, passou a contar uma história de que defendera um cara acusado de estupro. Não questionei nada sobre os detalhes, mas isso não foi preciso para que Romualdo contasse todos os meandros, todas as especificidades daquele caso. Enquanto falava em alto e bom som: “O sêmen não era dele”; “A penetração não foi profunda o bastante”; “não houve coito anal”; “a vulva estava incólume”; – os passageiros em volta olhavam espantados para ele, e o cara não se tocava que perto de nós havia crianças, pessoas idosas, gente amontoada. Foi aí que, como se eu tivesse apertado uma função “stand by” na minha mente, deixei de ouvir o que ele dizia, e prestei atenção apenas em sua expressão. Seus olhos estavam mais cinzas que azuis, e assustadoramente vítreos. Internamente, me perguntava sobre como é possível alguém ter tão pouca sensibilidade, simplesmente não notar que ali não era o momento de dizer aquelas coisas e daquela forma? Travei um embate sobre a necessidade de dar um toque no cara, ou deixar que uma hora ele se desse conta. Tenho uma tendência a intervir o menos possível quando se trata da liberdade alheia, mas, mesmo assim, a primeira opção fez-se vitoriosa. Resolvi mudar de assunto. Foi quando Romualdo me disse que iria descer, mas que gostaria de me reencontrar na prova de segunda-feira. Eu lhe respondi, dizendo: vá pela sombra! Pensei se um dia me tornaria daquele jeito, ou mesmo, se já assim não sou. Quem sabe o quão desagradáveis podemos ser?












sábado, 13 de julho de 2013

PASSARINHO



                                        Para Gabriele Toth, 





Tinha um passarinho,

Cujas penas brincavam com as cores

Voava pelos sonhos mais distantes

E de lá de longe o via voltar e trazer sabores




Anunciava a chegada com o seu cantar

Colorindo tudo ao seu redor

Bastando-se fazer presente, para as dores aliviar.




Pedia passagem à escuridão trazendo consigo a luz do dia

Já que esse passarinho, assim como as flores

Alimentava-se de Sol, sim, ele podia


Porém não retribuía com frutos, mas com amores!





Esse passarinho, às vezes, muito ficava agitado

Piava assustado

Gritos, sirenes, sujeira, maldade

O passarinho muito sofria viver na cidade

As voltas do mundo o assustavam

Não entendia por que as pessoas não se amavam

Cantava para mim que eu devia dar vida àquilo que sonhava

O que coloriu minha alma

Eu lhe retribuía afagando-o, 

Passando-lhe calma...


Por algum tempo, alimentou-se na minha mão

De companhia que expulsava a solidão

Cantou certa vez que me amava mais que o mundo

O que me tocou fundo.


Disse à ave querida:

Não sou maior que a vida...



Um dia esse passarinho cantou que partiria

E que aceitar eu teria

Ele tinha a vida a desbravar

Jurei que não choraria

Porque para sempre o veria 

No céu das lembranças a voar



Se dele falta sentir

Não hei de sofrer

Com ele aprendi, quando o ensinei

Todos estamos de passagem

A existência é só uma miragem,

Que apesar das distâncias,

Dos maldizeres e dos sofreres

Ânsias e sedes, 

O mundo não tem paredes!



Cantei ao passarinho que ele sempre terá um ninho

Quente, gostoso e salpicado de canela

Se sofrer nesse vasto mundo moinho 

Basta pousar em minha janela

Suas feridas hei de cuidar

E quando estiver refeito

Preparado para de novo se aventurar

Não se esquecerá de meu peito

Acalentado lar.


Pretende a ave descobrir o sentido da vida

Vejo-a voltar novamente, ferida

Que percorrera todo o céu cantará triste

Que vira tudo o que existe

E voltara para o mesmo lugar

Sem a grande verdade encontrar


Terei de dizer ao passarinho,

Que o sentido da vida é buscar seu sentido

E que se segredo há,

Está exatamente em sempre permitir-se voar!
























sexta-feira, 5 de julho de 2013

UMA NOITE QUENTE


       Daquelas que se você não se atira no mundo, o mundo massacra você. Foi numa assim que a coisa toda aconteceu. Mario Hirota e eu. Ele, deprimido; eu, em busca de coisas e sensações novas, diferentes. Após algumas garrafas e conversas absolutamente sem sentido, e, me diga uma coisa... Por que diabos tem que ter sentido? Decidimos cair na noite.

Um artista mal compreendido, solitário; um burocrata insatisfeito, que não tinha a mínima ideia de que rumo dar a sua vida. Éramos uma bela dupla.

Evidentemente, paramos na Rua Augusta. Afinal, a que outro lugar poderíamos ir? Caminhando, sempre no sentido centro, observávamos o que poderia rolar. De repente, após ultrapassarmos a passos largos cinco ou seis baitolas, nos deparamos com um grupo de 10 ou 12 garotas.

É algo incomum um grupo tão grande de mulheres se aventurando na noite paulistana. Se pretendesse entrar nas razões para que isso seja algo tão raro, deveria escrever um tratado de cunho sociológico, mas não quero, NÃO É A OCASIÃO.

O caso é que estávamos em meio. Puxei conversa. Houve alguma resposta, nada muito receptivo, porém não nos expulsaram. Acreditei num flerte com uma ou outra. Eram várias, sorrindo, falantes, um vasto harém da pós-modernidade.

Uma delas, a que parecia ser mais altiva, gritou: “a gente vai entrar na boate!”. Achei que fosse apenas uma mentira, uma forma de nos enrolar. Mas não era. Em fila indiana, caminhavam rumo ao guichê do puteiro à direita da Augusta, lá pelas bandas do meio, mais ou menos na linha média entre a Avenida Paulista e o centro sujo da Capital. Inacreditável. O que faria aquele grupo de garotas num puteiro? De qualquer modo, não havia outra coisa a se fazer, a não ser seguir o séquito.

Dez paus a cabeça pra entrar, com direito a uma breja. Nada mal. As garotas continuavam agrupadas, como que, se juntas, estivessem formando uma blindagem. A reação das putas era curiosa. Algumas olhavam com um certo ar de desdém. Outras, curiosamente, com empatia. Mas a esmagadora maioria, com um profundo ódio! No olhar delas, era como que uma placa de NEON, em letras garrafais, dissesse: SUAS VADIAS, SUMAM DAQUI. COMPETIÇÃO JÁ HÁ DEMAIS !!!

Entretanto, não demorou muito para que as garotas de programa notassem que o interesse das clientes era, exatamente, as próprias garotas de programa. A coisa toda caminhou para um clima de harmonia, o qual, porém, era interrompido, ainda que temporariamente, por uma ou outra figura escrota que tentava xavecar as minas do grupo como se fossem putas. Havia um sem número de caras sentados que, com a entrada das garotas, resolveu agir. O grande número delas fazia com que o cara logo saísse fora. Acabava sendo hilário.

Resolvi gastar nossos créditos. Duas latas de cerveja ruim. Uma para cada um. Razoável. Nos dirigimos para o grupo das mulheres transgressoras. Sim, transgressoras. Que garotas, reunidas em turma vão para uma boate frequentada apenas por homens? Digam o que disserem, aquilo, para mim, foi algo absolutamente contestador. Eu pensei nisso, não se tratava apenas de umas minas entediadas buscando algo para fazer numa sexta insossa, tratava-se, em última análise, de uma atitude anárquica, uma reação raivosa contra o sistema, contra o “estabilishment”. Eu sabia o que elas queriam com aquilo e pretendia, o mais rápido possível, fazê-las compreender que estava por dentro da parada. Queria um olhar delas sobre mim como quem olha alguém pertencente ao clã. Mais que isso, um olhar de admiração. Afinal, não é por isso que saímos de casa?

Consegui. Uma delas me olhou e disse “esse cara é foda, que tipo de moleque entra na boate usando chinelos. Ele é diferente, meninas! Me diga uma coisa cara, o que você faz mesmo?” Respondi, coisa e tal, mas logo o interesse dispersou. Não entendi. Meu amigo, Mário, tentava se aproximar, mas, como nada dizia, pouco era notado. De repente, percebi que algo iria acontecer. As mulheres passaram a dar as mãos e silenciosamente cada uma foi ocupando um ponto, formaram um círculo. Aí, a que parecia mais altiva, confirmou a aparência, discursou. Falava algo sobre a condição das mulheres, não deu pra ouvir direito. Após seu discurso, todas elas passaram a entoar alguns dizeres numa língua estranha (parecia ser numa língua estranha). ERA UM RITUAL, O RITUAL DAS LÉSBICAS PÓS –MODERNAS. Mário e eu apenas observávamos.

Foi aí que a merda aconteceu. Num rompante de loucura, me joguei no centro da roda. Pulei, ensaiei alguns passos de dança. Era uma forma de escrachar o que estava rolando. Atitude antissocial? Transgressora? Boçal? Criminosa? Sinceramente, não sei ao certo. O caso é que aquele “ritual” me provocou. Vai ver que minha reação decorreu de impulsos ídicos (relativos ao “ID”, acho que esse termo existe). Sabe aquela história da crise do macho? Hahahaha, é por aí...

Evidentemente, as garotas reprovaram minha atitude. Houve empurrões, gritos para que eu me mandasse dali. Foi o que, após alguma resistência, atendi. Fui ao outro extremo da boate e lá me sentei num sofazão vermelho. Mário ficou próximo ao ritual, com a cara de quem não entendia porra nenhuma. Realmente, não havia como entender.

Quinze minutos depois, voltei às proximidades do grupinho. Retomei um ou outro diálogo com uma ou outra delas. Havia umas mais receptivas, outras bem hostis. Sem dúvida nenhuma era um gineceu bastante plural, tanto nos penteados, aparências, quanto nos temperamentos. Se você não sabe o que é gineceu eu deveria sugerir que pesquisasse. Mas, considerando que você deve ser preguiçoso, vou dizer. GINECEU era o cômodo, o local, reservado às mulheres na GRÉCIA ANTIGA. Estou falando, portanto, de um gineceu, pelo menos quanto à composição, e não ao lugar. Pois na Grécia Antiga as mulheres dignas de estarem em um gineceu não frequentavam prostíbulos. Faziam o papel de putas no seio do lar. Mas, voltemos a Pós-Modernidade e sejamos amigos do SIGISMUNDO Bauman. Ah, você também não conhece o Sigismundo? Bom, nesse caso, por favor, vá pesquisar!

Mário perseverava. Parecia apaixonado por uma que ostentava um penteado bastante armado. Eu admirava seu poder de insistência e, mais ainda, a paciência da vítima.

Sem mais, nem menos, a líder anunciou a retirada. Mário e eu já havíamos bebido a garrafa de vodka das donzelas, e estávamos meio atordoados. A ordem de retirada nos atingiu. Perguntávamos para onde iriam. Se não gostariam de ficar um pouco mais. Desespero, insanidade, decadência.

Nossas súplicas não foram capazes de arrancar delas seu destino. Nada mais coerente. Era um grupo de lésbicas. A bebida, a madrugada, faz a realidade transmudar. Talvez, sob o sol do meio dia, aquela mulherada fosse repugnante. Uma vez que elas se arrancaram de lá, nós fizemos o mesmo. Mas, dessa vez, decidimos não ir atrás delas.

Nos viramos para o outro lado. Sim, havia outro lado. Nada transmudado. A noite cessava, e naquele momento não éramos capazes de avaliar se ela havia sido boa ou má, mas sentíamos o peso das horas. Para nós era certo que as coisas haviam acontecido, aliás, como, querendo ou não, sempre acontecem, é aquela história de beber para que algo aconteça. Quase nunca falha. Senti, de leve, um vento frio. Todo o calor que havia nos impelido à aventura, dissipara. Falando nisso, sempre me perguntei: é o frio que chega, ou o calor que se esvai?






segunda-feira, 1 de julho de 2013

EDINALDO


É difícil crer em algumas histórias. Costumo, no entanto, acreditar mesmo nas mais incríveis. Pense no grau de loucura das pessoas, toda aquela infindável carga de publicidade vomitada incessantemente sobre todos, todos os dias. Note as diferentes e doidas manias. Tantas bizarras associações: carro/relógio, esposa/jardim, sexo/dinheiro...

Já tem tempo que tenho notado tais maluquices, e por isso me sinto um tanto blindado. Quer dizer, eu acho que pelo menos até certo ponto. Mas acreditar nas histórias, por mais escatológicas que sejam, não tira delas o poder de nos chocar e, FELIZMENTE, divertir, ainda que de maneira tragicômica.

Havia um cara chamado Edinaldo. Defini-lo é traçar um paradoxo. Imagine um cara homossexual, afetado, de fala mole e trejeitos de perua. Mas, apesar disso, que ostente um baita rosto quadrado, uma enorme e grotesca mandíbula, cobertos por pelo grosso e espesso. Mesmo fazendo a barba todo o dia e, acredito eu, passando algumas loções e o caralho a quatro, o que se via naquela farta cara era uma grossa camada azulada, repleta de pequenos furos a indicar os pelos que ali cresceriam.

Se não bastasse o mal estar que a horrorosa figura causava apenas pela simples presença, sua necessidade de ser notado e, principalmente, de ser ouvido, fazia a coisa toda ficar bastante desagradável. Pequenos feixes de cabelo marcavam sua testa, precipitando-se do resto que sempre se encontrava besuntado de gel. Era a triste imagem de um vampirinho mandibuloso, não muito alto, mas atarracado, carente e verborrágico.

Edinaldo orgulhava-se em trabalhar no Palácio da Justiça. Os gays tendem a valorizar o lance da arquitetura, o refinamento, e por isso ele enchia a boca pra dizer onde trabalhava. Calculo que só não contava a outra parte. A de que era terceirizado, e que seu trabalho consistia em conferir a quantidade de volumes dos processos antes de colocá-los em malotes dos Correios.

Ainda que trabalhasse num local distante dos cartórios judiciais, fazia questão de dar rolê pelas salas do Palácio. Queria ver e, principalmente, ser visto. Foi assim que o conheci. Aparecia frequentemente no cartório em que eu trabalhava. Fez amizade com o par de pernas mais assediado da seção. Fazia os funcionários rir contando fofocas e suas impressões sobre as pessoas. Chegou a dizer que eu tinha jeito de que “gostava da coisa”, não me ofendi, deixava rolar. Não satisfeito, ele insistia que outro cara também era “veadinho”, esse cara também não ligou. Simplesmente não dava pra levar Edinaldo a sério.

No repertório de suas histórias, sempre havia um sexo selvagem com um cara bem dotado, quase sempre bonito e bom de grana. Também rolava o papo de que naquele dia, em especial, sentia verdadeira fome de pau; que não aguentava mais seu setor; que seguiria outra carreira; que fez amizade com alguém importante; que sua personalidade se afinava com certo personagem de uma novela. Ladainhas, ladainhas...

Teve um dia, no entanto, que a coisa mudou de figura. Edinaldo, sempre sorridente, daqueles caras que riam bastante, inclusive do que mesmo falam, estava triste. Macambuzio, perambulava pelo Salão dos Passos Perdidos. Eu tinha de atravessar o salão para levar um processo num Cartório, passei por ele.

- E aí, monstro, cê tá legal?

- Ai, Alê, mais ou menos. Aconteceu uma coisa meio triste, cara...

- O que foi?

- Lembra que eu te disse que queria ser ator pornô?

- Hum-hum, lembro.

- Pois é, fiz um teste ontem. Mas foi uma droga, quero dizer, deu tudo errado...

- Não te contrataram por que você é muito feio?

- Ai, idiota, não zoa, não vê que tô mal?

De fato, ele estava na “bad”, como dizia. Nunca o tinha visto naquele estado. Resolvi ser legal, não queria que ele chorasse. Não na minha frente.

- Tô brincando, desculpa. Mas e aí, o que pegou?

- Você sabe como são os testes para os filmes pornô?

- Não faço ideia.

- Cara, me comeram por três horas, praticamente sem parar. Foi um verdadeiro revezamento de rolas. Eram picas enormes, pés de mesa, me estraçalharam!!!

Segurei o riso. Não queria uma bicha gritando comigo. Disse:

- Mas por que está triste, então? Achei que estivesse realizando um sonho.

- Você não tá entendendo! Fui estraçalhado! Três horas! Me lembro de quatro ou cinco caras!

- Tá, entendi, devem ter te machucado. Mas depois de tudo isso, eles devem ter gostado de você, não?

- Não, cara, não fui selecionado! Depois do teste, me disseram que EU NÃO TINHA O PERFIL! Tremi, fiquei em estado de choque! E Sabe a única coisa que eles me deram?

- Não.

Percebi que Edinaldo lutava contra o choro. Balbuciou:

- Um refresco de caixinha.

domingo, 30 de junho de 2013

DIAS CINZENTOS NA CAPITAL


Penso naquela cárie bastante profunda
Presente no dente molar do aluno da Uninove
Nos estômagos remexidos em razão das ressacas
Telefonemas e/ou mensagens que não foram dados
A despeito das promessas de que seriam

Jogos de computador, pornografia na internet
As horas escorrem rumo ao vazio
Dores nas costas, alongamentos que não foram feitos
Gorduras viscerais, comidas rápidas nas horas perdidas do dia ou da noite
Cartões de crédito, ingressos, bilhetes do metrô

O sentimento de estar envelhecendo
De deixar de ser uma possibilidade
E tornar-se um fracasso em definitivo
As cáries perserveraram doendo
O hálito de dente careado não estava bom
Mas os chicletes de menta o encobriram

Nas televisões colocadas nos ônibus
Há a notícia de que Ronald, filho de Ronaldo, o Fenômeno
Mudara o penteado
Trata-se da nova personalidade artística brasileira
Construída por bem formados publicitários da Escola de Comunicação
E Artes da Universidade de São Paulo

Naquele drink havia uma dignidade diferente
Era importado o whisk que o compunha
Um novo aparelho celular se repete aos milhões
Mãos descalejadas seguram-nos, e quase nunca os soltam
A chuva forte começou e
As mentes liquidadas lambuzam as calçadas

É mais um dia cinzento na Capital.








quinta-feira, 6 de junho de 2013

DENIS MÃO-QUEIMADA



              Eu tinha uns doze ou treze anos, e estudava no Fábio Barreto. Por ser uma escola pública, era um lugar absolutamente interessante, ainda que deprimente vez ou outra. Nessa idade, tinha muitos amigos. A grande parte deles era pé rapado, como eu. Mas alguns eram miseráveis a ponto de não ter o que comer em casa e esperarem ansiosamente pela merenda, quase sempre sopa fria. Perto desses caras eu me sentia rico.

            Além dos amigos, havia outros caras que às vezes eram legais, outras vezes extremamente violentos. Me lembro de um tal Alexandre Crown (acho que é assim que se escreve o nome dele), era um cara branco, de olheiras profundas e cabelo avermelhado. Um tipo nada comum na nossa escola. Talvez nos identificássemos por sermos brancos.  Ele era muito esperto, e inteligente até, mas sofria de uma terrível oscilação de humor. Uma vez, sem que eu nada perguntasse, levantou a camisa e se virou de costas. Fiquei chocado com a quantidade de vergões, cicatrizes, hematomas. Riu da minha cara de espanto. Teve uma outra sensacional. Ele mostrou os pelos do saco para as minas mais velhas, provando que eles eram ruivos. Naquela idade acredito que ele era o único a ter pelos no saco. Estudamos juntos na quinta série. Na sexta, achei que fosse encontrá-lo, mas fiquei sabendo que havia morrido. Um moleque me contou que Alexandre morreu ao pular no rio, disse que ele estourou a cabeça ao se jogar da ponte e atingir uma rocha.

            Tinha outras figuras estranhas. Um cara chamado Eduardo, que logo passamos a chamar de Edurubu, pois a semelhança com a ave de rapina era óbvia. De tanto zoá-lo, um dia acabei despertando sua fúria e sobrou para os ossos de minha face. Nada mais justo. Edurubu se tornou um grande capoeirista, vai ver fui eu o responsável, hahaha. Só não contava com o que a sorte armou para ele. Isso aconteceu quando já havíamos terminado a escola (eu acho que ele terminou). Edu estava morando com uma mina e, segundo me contaram, a garota estava com muita raiva dele. Enquanto Eduardo dormia, ela jogou água fervente na sua cabeça. Edurubu quase morreu. Mas, uma vez renascido, jamais foi o mesmo. Tornou-se um grande traficante e hoje habita frequentemente grandes presídios.

            Durante meus doze, treze anos, desenhava compulsivamente. Quase sempre retratava colegas de sala de maneira bizarra. Professores também. Não sei se de tanto praticar, acabei ficando bom nisso. Uma vez, na aula de arte, estava desenhando uma paisagem formada por figuras geométricas (acho que esse era o dever). Um cara da minha sala que quase nunca falava comigo, parecia bem mais velho, repetente, colou do meu lado e passou a observar eu desenhando. Fazia uma cara de idiota maravilhado. Aquilo para mim era algo incomum. Esperava que ele tirasse sarro, desse um tapa na minha mão, qualquer coisa, mas não que admirasse. Ele me disse: “cara, você desenha muito bem, que dá hora, pô, você é foda!”
           
            Apesar do estranhamento inicial, fiquei contente por saber que tinha um aliado repetente. Naquela escola nunca sabíamos quando precisaríamos de um desses.

            As manifestações de apreço não pararam por aí. Uma vez a professora de língua portuguesa nos obrigou a ver um filme. Era sobre um garotinho que conversava com seus brinquedos, era um boneco de índio e um boneco de um cara branco do faroeste. Esse garotinho tinha olhos azuis e cabelos loiros. O repetente, no final do filme, chegou em mim e disse: “pô, cara, cê viu os olhos do carinha, azulzinho, que dá hora...o cabelo dele era que nem o seu, e seus olhos são quase como os dele, né?” Nesse momento não sabia o que dizer. O cara era negro, ou melhor, mulato escuro, algo assim, e nutria uma admiração mórbida pelos brancos. Naquela altura eu já sabia que aquilo poderia se dever, em parte, a um padrão estético coisa e tal, certamente não conhecia a palavra estético, mas tinha noção do que era um padrão de beleza. Na minha mente conformei a coisa dessa maneira.

            Um dia, no intervalo da aula, que chamávamos recreio, um cara chegou em mim e disse: você é brother de Denis Mão-Queimada? Eu disse que nem ao menos conhecia. Então o moleque apontou para o meu fã repetente. Eu nem sabia seu nome, muito menos o apelido, Denis Mão-Queimada. Depois de saber o seu nome e apelido, me senti mais seguro diante de uma eventual abordagem da figura. Se o chamasse pelo nome caso se tornasse violento do nada, certamente se acalmaria. Evidentemente, não falaria o apelido. Imaginava que ele o odiasse. Denis realmente tinha numa das mãos marcas de queimadura, o que era suficiente para dar pena. O caso é que poucos tinham pena dele. A maioria tinha medo, e por isso um grupo muito seleto de alunos daquela escola o chamavam de Denis Mão-Queimada.

            O tempo foi passando, e Denis, de uma hora para outra, desapareceu. Quando temos doze, treze ou quatorze anos, as coisas acontecem repentinamente. Nossas cabeças rapidamente se ocupam com algo novo e não nos damos conta da inexorabilidade do tempo. Não damos conta que existe a palavra inexorável.

            O caso é que eu já havia esquecido desse cara, quando ouvi uns garotos conversando e citando seu nome, ou melhor, seu nome completo, Denis Mão-Queimada. Disse a eles que o conhecia, coisa e tal. Aí me contaram que Denis havia saído da escola porque sua mãe tinha sido presa, e ele teve de se virar. Sobrevivia de pequenos furtos e alguns bicos. Acrescentaram que Denis havia quebrado o braço ao cair da cama de João Boludo, um velho horroroso que o enrabava a troco de alguns vinténs. Os moleques, chorando de rir, me disseram: “agora ele não é mais Denis Mão-Queimada, é DENIS GOZINHO.”

            Provavelmente eu devo ter rido junto. Lembrando agora soa como pura maldade. É aquela história do inexorável. A vida é implacável, não dizem? O caso é que Denis me parece, agora, como um garoto que não causa medo algum.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A PONTE






                                                                              “The river of deceit flows down"
                                                                              (Layne Staley)

O rio era determinado
O sentido para o qual corria era sempre o mesmo
Antes de saltar da ponte, imaginava segui-lo eternamente
Mas uma vez dentro dele, era apenas levado
Não seguia, não agia, não podia, não queria
Acontecia...
De corpo estendido, de costas para o remanso
A luz escurecia a visão.





domingo, 26 de maio de 2013

KELSEN, KANT E LUHMANN


Fiz algo que deveria ter feito há muito tempo. Em cima do guarda-roupas do meu quarto eu depositei, ao longo dos últimos ANOS, textos da Faculdade de Direito. Havia uma quantidade enorme de papéis, quase sempre fotocópias de livros, absolutamente empoeirados. Mais do que uma simples limpeza, o exercício de hoje, para mim, significou um reencontro com o passado, que eu estava, por preguiça, adiando.

A maior parte dos textos versava sobre Filosofia do Direito, os de outras matérias normalmente eu não adquiria. Tive uma estranha sensação ao folheá-los. Quase todos eu havia lido e, mesmo assim, não tinham qualquer significado para mim. Nas três ou quatro viagens que fiz para levá-los à reciclagem, refleti que os poucos anos que me distanciavam daquelas leituras me fizeram perceber o quão falsas, hipócritas, mentirosas, seja lá que nome se queira dar, as festejadas teorias lá presentes são.

Pense comigo, será que é razoável que se dê tanta notoriedade a um pensador cuja obra prima em Filosofia do Direito é dizer que a validade de uma regra deriva de outra que lhe confere igualmente validade? A teoria desse cara, chamada “Teoria Pura do Direito”, define o Direito como um complexo de normas, ligadas umas às outras por relação de validade, formando uma espécie de degrau, um escalonamento. Haveria um início, afinal se o pressuposto da teoria é uma validade dada por uma norma preexistente, chega o ponto de ter que ter um começo, um ponto de atribuição de validade, senão a coisa vai ao infinito. Foi aí que o cara tirou da cartola a “Norma Fundamental” (nesse momento imagino quantos estudantes, acadêmicos de direito, já não se referiram à famigerada, muitas vezes, quase nada pedantes, no original em alemão: “Grundnorme”). Se você perguntar a ele (referindo-se ao autor) ou a ela (referindo-se à Teoria) sobre a fonte de validade dessa norma fundamental, ele ou ela responderia, tranquilamente: ISSO NÃO É UM QUESTIONAMENTO ESTRITAMENTE JURÍDICO, LOGO, ESTÁ FORA DO ÂMBITO DA TEORIA PURA DO DIREITO. A NATUREZA DEONTOLÓGICA DA NORMA FUNDAMENTAL É DE UM CONSTRUCTO ABSTRATO NECESSÁRIO PARA CONFERIR COERÊNCIA À TEORIA. Bonito, não?

O que me provoca desânimo não é o fato de existir essa teoria, e que ela tenha alcançado sucesso. O que desanima é perceber que várias gerações de estudantes de direito aprendem isso na faculdade, como se essa definição fosse a mais exata acerca do que é o direito. Poucos anos de trabalho no tribunal de justiça, entre cartórios judiciais, gabinetes de desembargador e algumas leituras de textos de autores verdadeiramente filósofos (Marx, Sartre, Foucault, Zaffaroni) me fizeram perceber que a pobreza nisso tudo está em não se dar a mínima pra realidade de fora. A universidade cria um código, e o reproduz. Se lá fora o bicho tá pegando, tanto faz, o importante é a erudição, o que vale é citar em alemão “Grundnorme”.

Outro autor vinha com uma história de “Teoria dos Sistemas”. Deus do Céu, quantas vezes, em sala de aula, tinha de ouvir sobre isso. Apesar de toda a empolação, é algo muito simples. O cara parte da ideia de que a sociedade é a totalidade das comunicações. Note, ele não fala em seres humanos que peidam, fodem, dormem e cagam, ele fala em COMUNICAÇÃO. Bonito, não? Aí o gênio germânico imagina a sociedade como vários grupos, esferas de comunicação, entre as quais se destacam algumas por conta de seu tamanho em relação às outras. A Economia, a Política e o Direito são as principais esferas. As bolas se tocam. Política tocando economia dá o quê? Normas jurídicas (Leis) que disciplinam as relações de mercado, etc. Quando a bola da Política toca a do Direito, ocorre a Constituição (documento ao mesmo tempo político e jurídico). Por aí vai. Não é tão complicado, ou é?

A teoria não é ruim. Comparada com a primeira, é até mais bem elaborada. Mas, como eu disse no começo, onde estão as pessoas? Não é algo muito abstrato? Me assusta esse papo de sistema, até porque, ultimamente, até comentarista de futebol fala nisso. Já ouviu aquela conversa de “SISTEMA DEFENSIVO”? Eu sempre rio, quando não me revolto. Se o comentarista fala isso, eu mudo de canal. Lembra daquele verso do Capital (falo da banda, não se preocupe): “Se aparece o Francisco Cuoco, adeus televisão!”? É bem por aí! Será que o cara não percebe que são apenas uns pernas de pau tentando roubar uma bola, fazendo uma linha de impedimento meio torta, dizendo um para o outro “pode ir que eu fico”, “ eu dou o primeiro combate”. Não consigo imaginar que isso tenha qualquer relação com algo tão complexo como um sistema. Converse com os engenheiros eletrônicos, os doidos da informática, esses sim sabem o que é sistema. Ou mesmo com os biólogos e médicos e os peça para que eles expliquem um sistema tal com um sistema digestório, respiratório, excretor. Caso lembre de mais um vale este também.
           
Tinha um assistente de professor que pra dizer Luhmann, dizia LLLHHHHIIIUUUUMANN. Isso foi igualmente marcante.
           
Voltando para as teorias, o que falar do Kant? Lá na Faculdade de Direito ele é o cara! Os professores querem que a gente acredite nos imperativos categóricos. Piada, não acham? “Age no sentido de que sua conduta...” Parece que estou ouvindo um padre rezando sua missa. Nos cinco anos que estive na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco o filósofo de que mais ouvi falar foi ele. Nos passaram alguns textos, obviamente os mais ligados ao Direito. Não são maus. Ele, evidentemente, tem seu valor, foi um grande filósofo e tudo mais. O que questiono não é isso. O que é inacreditável é que filosoficamente a Faculdade de Direito da USP parou no Kant. Parou no século XVIII. Jamais ouvi falar em NIETZSCHE, muito menos em SARTRE. Forcei a barra no curso de Filosofia do Direito II e apresentei um seminário em que citava o Sartre e explicava alguns de seus pressupostos. Palavra, senti um interesse incomum por parte dos estudantes. Era notório que aquela garotada estava carente de discutir questões substanciais, temas reais, que exalam calor, que cheiram bem, ou fedem, ou que roubam nosso calor, mas que são capazes de nos envolver de verdade.

            Novamente tracei o caminho que me levou à ESTUPEFAÇÃO diante do ACADEMICISMO. Me lembrei que o ponto forte foi quando estudei, sozinho, é claro, sobre o existencialismo, e pude confrontar aquela filosofia com o que eu estava aprendendo na faculdade. Foi tiro e queda. Um golpe mortal no idealismo. A São Francisco perdia um estudante entusiasta, e ganhava um inimigo. Óbvio que ela não se importou.

            Passados dois anos que me formei, estou pensando em tentar o Mestrado. Olha que paradoxo. Tô metendo o pau, e agora venho com essa conversa. Deixa eu explicar. Estava falando no Kant, não é? Então, a definição por ele formulada sobre os direitos humanos é a que mais se utiliza nos cursos jurídicos. Pretendo questionar tal definição através de um olhar existencialista. Questionar esse papo de “NATUREZA HUMANA”, e defender que uma concepção dos direitos humanos sob a ótica do existencialismo é muito mais pertinente na medida em que não está descompassada com a realidade. Se o discurso sobre a fundamentação dos direitos humanos parte de uma premissa que leva em conta os homens de carne e osso, que sofrem, amam e apodrecem, a conversa fica mais sincera. Ultimamente, muitos professores de direitos humanos sequer tem ideia do que estou falando. É triste, mas é assim. Eles acham que um muçulmano deve engolir os imperativos kantianos. Que os homens têm uma mesma natureza. Que é possível estabelecer padrões comportamentais apriorísticos que inevitavelmente farão com que alcancemos uma paz perpétua. Tem que ter muita paciência, não acham? Eles não fazem ideia de que o que nos une enquanto humanos é padecermos de uma mesma condição, que pode ser chamada de condição humana. Todos nós, pigmeus, esquimós, cambojanos, aborígines, suecos, estamos fadados a sermos livres, e, querendo ou não, somos responsáveis por muito do que tá acontecendo. Ao invés dos formais imperativos categóricos, prefiro pensar como o Sartre, que quando você escolhe para si, está escolhendo para todos. Compreende? É com essa conversa que quero MESTRAR por lá. O problema será encontrar professor que tope me orientar, pois se quiserem que eu leia o Kelsen, o Luhmann e o Kant não vai rolar, seus textos foram urgentemente reciclados.