sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O BRASIL DO SENSO COMUM: A CONCLUSÃO DO INTRAGÁVEL ANO DE 2016



            Quem já alcançou seus 25, 30 anos de vida certamente não se recordará de outro tempo em que tanto se discutiu política. Claro que quantidade não traz consigo qualidade. A popularização das mídias sociais teve o efeito de, por um lado, trazer mais gente para esse tipo de discussão, mas, por outro lado, fez nivelar a coisa por baixo, muito baixo. Não que antigamente não se ouvisse nos bares, filas de bancos e supermercados coisas do tipo "espero que caia um meteoro em Brasília", "bandido bom é bandido morto", "no tempo do governo militar havia ordem e o Brasil crescia, vagabundo não tinha vez", "socialistas são assassinos" etc etc. A diferença é que hoje a coisa tá lá escrita e, em escala exponencial, viraliza-se, nos assombrando a cada visita à praça pública dos nossos dias, qual seja, o facebook.

            O ideal seria que as pessoas procurassem se informar de verdade antes de manifestar opiniões tão categóricas, ou seja, usassem o bom senso. Ocorre, no entanto, que o bom senso passa muito longe da maior parte dos posicionamentos políticos que a gente vê, os quais, se bem analisados, não passam, em geral, de preconceitos, ou seja, são absolutamente destituídos de qualquer argumentação racional. Hoje um sujeito escreveu que "Lula é cachaceiro" e "Dilma usa tarja preta", algo que, muito provavelmente, ele leu na Veja ou em algum blog da direita. Como seria bom se os cachaceiros do Brasil fossem como o Lula, um cara que, diga o que disserem, conseguiu romper com barreiras seculares e bateu de frente contra os sempre donos do poder...! A minha noção de cachaceiro é o coitado com a face espalmada na calçada do bar, e não o Lula. Sinceramente, não fazia ideia de que cachaceiro pudesse ser sinônimo de estadista. A rapaziada não deixa por menos quanto à Dilma. Ofendem-na de cabo a rabo, não manifestam o menor respeito por uma pessoa que quase perdeu a vida para que pudéssemos dizer o que pensamos, inclusive esse monte de bosta que falam dela.

            Faces gordas e oleosas acompanharam com cara alegremente abobada a condenação da ex-presidente ao impeachment. Ouvi fogos, buzinaço e gritos de euforia. Nada mais semelhante com futebol, não? Com certeza deve haver uma alegria na burrice. Um certo estado de torpor mental que leva o sujeito a facilmente ser induzido, adestrado. Pensar de maneira crítica no Brasil é algo tão estranho que é quase como se você fosse um estrangeiro, na pegada do estrangeiro do Camus, tá ligado? Bom, se você conhece o Camus certamente você também se sente assim, nem preciso explicar...

            Qualquer discussão minimamente séria sobre política deveria partir de premissas correspondentes a dados objetivos da realidade. Brasil, 2016, é um país ainda extremamente desigual, seja na renda seja nas oportunidades; a qualidade e o desenvolvimento dos sistemas de saúde e de educação ainda estão longe do que seria aceitável para um país rico como o nosso; o Estado brasileiro é financiado, em sua maior parte, pela classe trabalhadora (sim, eu e você) seja através dos tributos que incidem no consumo, seja na tributação da renda do proletariado (os grandes capitais são relativamente pouco taxados, assim como as grandes fortunas e heranças); o sistema judiciário, apesar das recentes melhorias, ainda é precário, de modo que não responde de maneira satisfatória ao universo de demandas típicas de uma sociedade complexa como a nossa; temos um sistema de segurança pública dos mais violentos do mundo, sendo frequentes as chamadas execuções extrajudiciais, abuso de poder, tortura, participação de policiais em redes de criminalidade organizada etc. O legislativo federal é altamente dispendioso e a atual composição é considerada por analistas sérios a pior da história. Infelizmente, a maior parte das pessoas simplesmente desconhece tais dados e aceita facilmente a opinião do senso comum. Não é raro encontrarmos pessoas com nível superior (professores, médicos, advogados...) emitindo opiniões que parecem referir-se a sociedades totalmente diferentes da nossa, ou seja, partem de premissas absolutamente distintas das correspondentes a nossa realidade.

            Tendo por base essas premissas, qualquer pretensão de que o Brasil avance tanto enquanto sociedade (com mais qualidade de vida, mais justa e coesa) tanto enquanto economia (melhoria da renda, maior geração de empregos etc), não poderia abrir mão das seguintes reformas, as quais consistem em, grosso modo: i) elevar a tributação sobre as classes mais abastadas  (tanto na criação do imposto sobre grandes fortunas quanto no aumento da alíquota sobre o lucro líquido das grandes empresas, assim como a elevação da tributação sobre grandes heranças) e, ao mesmo tempo, reduzi-la sobre a classe proletária, de modo a aumentar o poder de compra da classe assalariada, o que teria evidente impacto positivo na economia; ii) uma vez financiando-se o Estado majoritariamente dos grandes capitais e fortunas, haverá a possibilidade de redução gradual da taxa de juros oficial, o que teria o efeito direto de reduzir a dívida pública e o indireto de estimular investimentos em produção, desencentivando o capital especulativo; iii) reforma política visando reduzir os gastos com campanha eleitoral, a redução das verbas parlamentares tanto na assessoria quanto nos projetos de lei; iv) reforma administrativa no sentido de reduzir abruptamente a quantidade de cargos em comissão e, na medida do possível, ocupá-los por servidores concursados; iv) redução dos subsídios para a agricultura comercial e a elevação dos mesmos para a agricultura familiar (para que menos Caiados da vida mamem no Estado, entenda-se); v) aumentar os investimentos públicos em educação, notadamente visando a formação de bem preparados professores do ensino básico, estimulando a opção pela carreira através de melhorias salarias e bons planos de carreira, bem como investir de maneira crescente em pesquisas científicas.

            É claro que escrever sobre tais reformas é muito tranquilo e fácil. Não sou tão idiota a ponta de desconhecer o quão difícil será implementar mesmo uma parte ínfima do que citei, assim como o tempo que é necessário para a concretização das mesmas, ainda mais sabendo o grau de ignorância do povo e a evidente ausência de qualquer interesse das classes dirigentes na perda de seus privilégios. Contudo, o caminho é esse, e, meninos da direita, gostem ou não, foi o trilhado pelas nações mais avançadas do mundo.
            É comum presenciarmos professores, médicos, advogados, engenheiros manifestando opiniões do tipo "brasileiro é vagabundo e o bolsa família o deixa ainda mais". Você sente uma espécie de náusea e tenta argumentar. Explica para a pessoa que sociedades avançadas possuem políticas de distribuição de renda semelhantes, e, em geral, ainda mais abrangentes. Também rola de escreverem que o Estado tem que cortar gastos, que deve encolher, para que a economia alavanque. Aí você argumenta que as principais economias do mundo contaram e contam com efetiva atuação do Estado seja no investimento em infraestrutura seja no investimento maciço em pesquisa tecnológica e em educação, e que para isso é necessário tributar. Chegando na tributação, se você ainda tem paciência, tentará fazer o sujeito perceber que o problema está na fonte da tributação, ou seja, em quem está bancando o Estado. Nesse ponto, o tipo simplesmente ignorará o que você argumentou, e dirá que jamais será um vermelhinho e aqui chegamos na "esquerdofobia".
            A esquerdofobia brasileira é algo bastante interessante. O Lula, na sua sabedoria pragmática, evitava, em seus discursos, citar a palavra "esquerda" e/ou "socialismo". Habilmente, ele se referia a "um governo social". Esse cuidado do ex-presidente tem toda a razão de ser. O brasileiro foi doutrinado a repudiar a esquerda e o Lula sabe disso. Esse processo de doutrinação tem a mesma raiz de outras crenças que acabaram por fazer parte do nosso senso comum, tais como a ideia de que não existe racismo no Brasil, a crença de que o brasileiro é um povo afável, amoroso e pacífico, a ideia de que todo aquele que se esforçar "vencerá" na vida, que integrantes de movimentos sociais são vagabundos e marginais, que o fumante de maconha é um ser pernicioso para a sociedade, dentre outras pérolas.
            Boa parte dos esquerdofóbicos brasileiros são pertencentes à classe proletária, a maior prejudicada com as políticas neoliberais ou de direita, como queiram. Isso acontece justamente porque tais pessoas simplesmente repetem o senso comum, aquilo que ouviram desde a tenra idade e continuam a ouvir na televisão. E, onde impera esse senso comum, o bom senso passa longe.
            O movimento pelo impeachment, que se consubstancia efetivamente num golpe parlamentar, afinal não houve propriamente crime de responsabilidade da presidente, é tão covarde e hipócrita que se vende ao povo como "luta contra a corrupção". Uma vez no poder, a direita faz cara de piedade e, num português com cuidada correção gramatical, diz: "sacrifícios serão necessários, mas o resultado de tais sacrifícios será a saída da crise com a retomada do crescimento da nossa economia". É tragicômico pensar no Zé Povinho, que ganha 2 mil por mês, curtir essas múmias da direita, não se dando conta de que os sacrifícios incidirão somente sobre os coitados como ele, e que os ricaços permancerão ostentando suas fortunas e seus privilégios.
            As elites ou classes proprietárias, como queiram, defendem a política direitista na medida em que tais políticas as beneficiam diretamente. Apesar de já riquíssimos e sobrecarregados de privilégios creditícios e fiscais, os caras querem mais. Vá lá querer mais se o brasileiro médio vivesse bem, se nosso país não fosse tão marcado por severas injustiças sociais, mas não é o caso. Os convictos direitistas pertencentes às elites sabem o quão desigual é esse país e, ainda assim, não querem abrir mão de nada e não se comprazem com o mar de sofrimento alheio que provocam. Aqui tem-se um caso de direitismo consciente, por falta de caráter, oportunismo e canalhice.      
            Já o pobre, pense naquele professor de exatas da educação básica, no técnico contabilista que enche a boca pra falar mal da esquerda e baba o ovo da pirralhada do mbl, não pode ser rotulado como um canalha. Até poderia ser de sadomasoquista, caso soubesse verdadeiramente o que está defendendo. Contudo, como ele não sabe a fundo do que se trata, revela-se ignorante em política, história, sociologia, o que defende é apenas a reprodução do senso comum, é um direitista não por oportunismo ou falta de caráter, mas por falta de conhecimento.

            Assim, chegamos a uma interessante e derradeira conclusão, que o BOM SENSO nos permite: NO BRASIL, SE VOCÊ É DE DIREITA, DAS DUAS UMA: OU VOCÊ É UM IGNORANTE, OU VOCÊ É UM CANALHA.