quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

RESILIÊNCIA


 

RESILIÊNCIA: s.f. Figurado. Habilidade de se adaptar com facilidade às intempéries, às alterações ou aos infortúnios. 


Pensando bem nem era pra eu ter parado ali. Certamente havia coisas muito mais interessantes e prazerosas a serem feitas, mas nem sempre sabemos se efetivamente as realizaremos, tudo às vezes morre no hipotético - talvez esse seja o segredo do sucesso, vencer o hipotético; ta aí um bom mote pra livro de autoajuda, ou uma bosta de um mote, seja como for autoajuda é sempre um sucesso, o que denuncia o nosso fracasso, ao menos no plano do hipotético...

O caso é que, atendendo ao chamado de um antigo colega de escola, me vi sentado na mesa do bar de esquina. Era na calçada e, por poder ver o céu e o movimento da rua, a chateação diminuía consideravelmente.

Além de mim e do cara, estava sentado à mesa um casal na faixa dos 40. O homem era forte e sorridente, meio bobo alegre; a mina era bem magra, de aspecto nervoso e emotivo (o que quase sempre não indica boa coisa), cabelos lisos e negros, aparentemente meio ensebados e tinha olheiras profundas, das que dão em pessoas que dormem muito mal ou sofrem de alguma forma de desnutrição, ou alguma talassemia, coisas assim...

Esse meu ex-colega da escola puxou antigas histórias – muitas das quais eu não me recordava. Não sei se por ser muito gente boa, ou por ter um senso de humor muito fácil, o quarentão ria de tudo, e não era um riso que incomodava, era caloroso. Você com certeza iria querer tê-lo como irmão, vizinho ou colega de trampo. A mina dele, por sua vez, fazia uma cara enfezada, mas não parecia ser em razão de estar ali. Ela olhava para as pessoas e franzia  a testa, parecia afetar-se, comover-se, talvez imaginando o que as pessoas diziam ou pensavam. Os caras, contudo, não se davam conta, ou fingiam não se importar com a estranha expressão da mulher.

Houve um momento, então, que ela entrou na conversa. Não me lembro qual foi o gancho que pegou, mas quando dei por mim ela estava falando da horrível situação das escolas públicas, relatando eventos trágicos e, como uma atriz decadente, torcia a cara das mais variadas formas para gerar comoção. Sua voz era estridente, metálica e meio falhada. Parecia estar doente ou, quem sabe, ser doente. O maridão, incrivelmente, não mudava sua expressão plácida. Ela disse muitas outras coisas, muito provavelmente sem sentido, o caso é que numa certa altura não prestei mais atenção. O que realmente me fascinou foi o maridão, que candidamente parecia não se incomodar. Eu me perguntava como o cara agüentava aquilo, imaginava como seria o cotidiano com aquela mulher, como seria transar com ela, ou pedir pra que pegasse um copo ou passasse o azeite...

Talvez pensando o mesmo que eu, já incomodado com a figura, meu ex-colega deu uma cortada na mina. A reação dela, porém, foi desagradável. Passou a falar mais alto e exagerar nos gestos, o que resultou na queda de dois copos e uma garrafa na calçada. Nesse instante, olhei pro seu marido, esperando que a placidez sumisse. Que nada! O cara continuou sorrindo, como um bonecão de cera.

O garçom veio pra limpar a coisa toda, mas a mulher não deixou, teimou que iria limpar. No que levantou pra pegar os cacos, escorregou e caiu tão rapidamente, que seu marido não conseguiu segurá-la. A queda foi plástica, estilizada, daquelas em que a pessoa se espalma no chão, cai por inteiro. Nem preciso dizer que a galera do bar se manifestou na forma de berros e grunhidos típicos de seus frequentadores – gente entediada esperando que algo aconteça, por mais idiota que seja, como se sabe.

O maridão a levantou, fez-lhe um carinho na testa e cabelos, beijou-a e, apesar de todo o afago que a ela dispensou não foi exitoso na tarefa de fazer daquela cara algo menos horrível – a  expressão de sua mulher estava mais assustadora que antes.

Pensei que, após a queda, ela ia ficar com a cara fechada e pronto. Mas que nada. Dali em diante, sua voz ficou mais poderosa e, enquanto voltava a detonar o sistema público de educação e, ingenuamente, botar a culpa nesse ou naquele político, notei que meu ex-colega já estava se incomodando, meio que se sentindo envergonhado pelo seu amigo, o maridão. Quem olhasse pra mesa ia presenciar uma cena deprimente - uma mulher aparentemente ensandecida falando como se estivesse discursando para uma platéia interessada, quando na verdade era dois entediados e uma figura aparentemente desprovida de capacidade crítica.

O monólogo dela deve ter se estendido por algo em torno de meia hora. Nesse tempo, refleti sobre as muitas formas de loucura e que talvez a resiliência fosse uma delas. “Como esse cara agüenta? Será que ele conheceu outras mulheres? Será uma promessa paga? Uma herança? Devem levantar um busto em sua homenagem...”

De repente, noto que algo faz mudar a cândida expressão do marido. Ele olha com atenção, franzindo a testa, na direção de um vigilante motoqueiro - desses que trampam de fazer ronda apitando no período da noite - que dobrava  a esquina. Eu imaginei que havia algo grave acontecendo naquela direção, tipo um mendigo sendo agredido, uma mulher apanhando, mas não, o cara olhava era mesmo para o motoqueiro. O vigilante, ao se aproximar um pouco do bar, apitou. No instante do apito, o maridão franziu todo o rosto, como se estivesse tomando um choque ou uma picada, e nos disse, numa fala ansiosa, em volume alto e estridente, que em nada fazia lembrar seu comportamento anterior, parecia vindo de outra pessoa: “EU ODEIO ESSA PORRA DESSE APITO!!!”

Voltando pra casa deduzi que tamanha resiliência tinha seu preço.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O BRASIL DO SENSO COMUM: A CONCLUSÃO DO INTRAGÁVEL ANO DE 2016



            Quem já alcançou seus 25, 30 anos de vida certamente não se recordará de outro tempo em que tanto se discutiu política. Claro que quantidade não traz consigo qualidade. A popularização das mídias sociais teve o efeito de, por um lado, trazer mais gente para esse tipo de discussão, mas, por outro lado, fez nivelar a coisa por baixo, muito baixo. Não que antigamente não se ouvisse nos bares, filas de bancos e supermercados coisas do tipo "espero que caia um meteoro em Brasília", "bandido bom é bandido morto", "no tempo do governo militar havia ordem e o Brasil crescia, vagabundo não tinha vez", "socialistas são assassinos" etc etc. A diferença é que hoje a coisa tá lá escrita e, em escala exponencial, viraliza-se, nos assombrando a cada visita à praça pública dos nossos dias, qual seja, o facebook.

            O ideal seria que as pessoas procurassem se informar de verdade antes de manifestar opiniões tão categóricas, ou seja, usassem o bom senso. Ocorre, no entanto, que o bom senso passa muito longe da maior parte dos posicionamentos políticos que a gente vê, os quais, se bem analisados, não passam, em geral, de preconceitos, ou seja, são absolutamente destituídos de qualquer argumentação racional. Hoje um sujeito escreveu que "Lula é cachaceiro" e "Dilma usa tarja preta", algo que, muito provavelmente, ele leu na Veja ou em algum blog da direita. Como seria bom se os cachaceiros do Brasil fossem como o Lula, um cara que, diga o que disserem, conseguiu romper com barreiras seculares e bateu de frente contra os sempre donos do poder...! A minha noção de cachaceiro é o coitado com a face espalmada na calçada do bar, e não o Lula. Sinceramente, não fazia ideia de que cachaceiro pudesse ser sinônimo de estadista. A rapaziada não deixa por menos quanto à Dilma. Ofendem-na de cabo a rabo, não manifestam o menor respeito por uma pessoa que quase perdeu a vida para que pudéssemos dizer o que pensamos, inclusive esse monte de bosta que falam dela.

            Faces gordas e oleosas acompanharam com cara alegremente abobada a condenação da ex-presidente ao impeachment. Ouvi fogos, buzinaço e gritos de euforia. Nada mais semelhante com futebol, não? Com certeza deve haver uma alegria na burrice. Um certo estado de torpor mental que leva o sujeito a facilmente ser induzido, adestrado. Pensar de maneira crítica no Brasil é algo tão estranho que é quase como se você fosse um estrangeiro, na pegada do estrangeiro do Camus, tá ligado? Bom, se você conhece o Camus certamente você também se sente assim, nem preciso explicar...

            Qualquer discussão minimamente séria sobre política deveria partir de premissas correspondentes a dados objetivos da realidade. Brasil, 2016, é um país ainda extremamente desigual, seja na renda seja nas oportunidades; a qualidade e o desenvolvimento dos sistemas de saúde e de educação ainda estão longe do que seria aceitável para um país rico como o nosso; o Estado brasileiro é financiado, em sua maior parte, pela classe trabalhadora (sim, eu e você) seja através dos tributos que incidem no consumo, seja na tributação da renda do proletariado (os grandes capitais são relativamente pouco taxados, assim como as grandes fortunas e heranças); o sistema judiciário, apesar das recentes melhorias, ainda é precário, de modo que não responde de maneira satisfatória ao universo de demandas típicas de uma sociedade complexa como a nossa; temos um sistema de segurança pública dos mais violentos do mundo, sendo frequentes as chamadas execuções extrajudiciais, abuso de poder, tortura, participação de policiais em redes de criminalidade organizada etc. O legislativo federal é altamente dispendioso e a atual composição é considerada por analistas sérios a pior da história. Infelizmente, a maior parte das pessoas simplesmente desconhece tais dados e aceita facilmente a opinião do senso comum. Não é raro encontrarmos pessoas com nível superior (professores, médicos, advogados...) emitindo opiniões que parecem referir-se a sociedades totalmente diferentes da nossa, ou seja, partem de premissas absolutamente distintas das correspondentes a nossa realidade.

            Tendo por base essas premissas, qualquer pretensão de que o Brasil avance tanto enquanto sociedade (com mais qualidade de vida, mais justa e coesa) tanto enquanto economia (melhoria da renda, maior geração de empregos etc), não poderia abrir mão das seguintes reformas, as quais consistem em, grosso modo: i) elevar a tributação sobre as classes mais abastadas  (tanto na criação do imposto sobre grandes fortunas quanto no aumento da alíquota sobre o lucro líquido das grandes empresas, assim como a elevação da tributação sobre grandes heranças) e, ao mesmo tempo, reduzi-la sobre a classe proletária, de modo a aumentar o poder de compra da classe assalariada, o que teria evidente impacto positivo na economia; ii) uma vez financiando-se o Estado majoritariamente dos grandes capitais e fortunas, haverá a possibilidade de redução gradual da taxa de juros oficial, o que teria o efeito direto de reduzir a dívida pública e o indireto de estimular investimentos em produção, desencentivando o capital especulativo; iii) reforma política visando reduzir os gastos com campanha eleitoral, a redução das verbas parlamentares tanto na assessoria quanto nos projetos de lei; iv) reforma administrativa no sentido de reduzir abruptamente a quantidade de cargos em comissão e, na medida do possível, ocupá-los por servidores concursados; iv) redução dos subsídios para a agricultura comercial e a elevação dos mesmos para a agricultura familiar (para que menos Caiados da vida mamem no Estado, entenda-se); v) aumentar os investimentos públicos em educação, notadamente visando a formação de bem preparados professores do ensino básico, estimulando a opção pela carreira através de melhorias salarias e bons planos de carreira, bem como investir de maneira crescente em pesquisas científicas.

            É claro que escrever sobre tais reformas é muito tranquilo e fácil. Não sou tão idiota a ponta de desconhecer o quão difícil será implementar mesmo uma parte ínfima do que citei, assim como o tempo que é necessário para a concretização das mesmas, ainda mais sabendo o grau de ignorância do povo e a evidente ausência de qualquer interesse das classes dirigentes na perda de seus privilégios. Contudo, o caminho é esse, e, meninos da direita, gostem ou não, foi o trilhado pelas nações mais avançadas do mundo.
            É comum presenciarmos professores, médicos, advogados, engenheiros manifestando opiniões do tipo "brasileiro é vagabundo e o bolsa família o deixa ainda mais". Você sente uma espécie de náusea e tenta argumentar. Explica para a pessoa que sociedades avançadas possuem políticas de distribuição de renda semelhantes, e, em geral, ainda mais abrangentes. Também rola de escreverem que o Estado tem que cortar gastos, que deve encolher, para que a economia alavanque. Aí você argumenta que as principais economias do mundo contaram e contam com efetiva atuação do Estado seja no investimento em infraestrutura seja no investimento maciço em pesquisa tecnológica e em educação, e que para isso é necessário tributar. Chegando na tributação, se você ainda tem paciência, tentará fazer o sujeito perceber que o problema está na fonte da tributação, ou seja, em quem está bancando o Estado. Nesse ponto, o tipo simplesmente ignorará o que você argumentou, e dirá que jamais será um vermelhinho e aqui chegamos na "esquerdofobia".
            A esquerdofobia brasileira é algo bastante interessante. O Lula, na sua sabedoria pragmática, evitava, em seus discursos, citar a palavra "esquerda" e/ou "socialismo". Habilmente, ele se referia a "um governo social". Esse cuidado do ex-presidente tem toda a razão de ser. O brasileiro foi doutrinado a repudiar a esquerda e o Lula sabe disso. Esse processo de doutrinação tem a mesma raiz de outras crenças que acabaram por fazer parte do nosso senso comum, tais como a ideia de que não existe racismo no Brasil, a crença de que o brasileiro é um povo afável, amoroso e pacífico, a ideia de que todo aquele que se esforçar "vencerá" na vida, que integrantes de movimentos sociais são vagabundos e marginais, que o fumante de maconha é um ser pernicioso para a sociedade, dentre outras pérolas.
            Boa parte dos esquerdofóbicos brasileiros são pertencentes à classe proletária, a maior prejudicada com as políticas neoliberais ou de direita, como queiram. Isso acontece justamente porque tais pessoas simplesmente repetem o senso comum, aquilo que ouviram desde a tenra idade e continuam a ouvir na televisão. E, onde impera esse senso comum, o bom senso passa longe.
            O movimento pelo impeachment, que se consubstancia efetivamente num golpe parlamentar, afinal não houve propriamente crime de responsabilidade da presidente, é tão covarde e hipócrita que se vende ao povo como "luta contra a corrupção". Uma vez no poder, a direita faz cara de piedade e, num português com cuidada correção gramatical, diz: "sacrifícios serão necessários, mas o resultado de tais sacrifícios será a saída da crise com a retomada do crescimento da nossa economia". É tragicômico pensar no Zé Povinho, que ganha 2 mil por mês, curtir essas múmias da direita, não se dando conta de que os sacrifícios incidirão somente sobre os coitados como ele, e que os ricaços permancerão ostentando suas fortunas e seus privilégios.
            As elites ou classes proprietárias, como queiram, defendem a política direitista na medida em que tais políticas as beneficiam diretamente. Apesar de já riquíssimos e sobrecarregados de privilégios creditícios e fiscais, os caras querem mais. Vá lá querer mais se o brasileiro médio vivesse bem, se nosso país não fosse tão marcado por severas injustiças sociais, mas não é o caso. Os convictos direitistas pertencentes às elites sabem o quão desigual é esse país e, ainda assim, não querem abrir mão de nada e não se comprazem com o mar de sofrimento alheio que provocam. Aqui tem-se um caso de direitismo consciente, por falta de caráter, oportunismo e canalhice.      
            Já o pobre, pense naquele professor de exatas da educação básica, no técnico contabilista que enche a boca pra falar mal da esquerda e baba o ovo da pirralhada do mbl, não pode ser rotulado como um canalha. Até poderia ser de sadomasoquista, caso soubesse verdadeiramente o que está defendendo. Contudo, como ele não sabe a fundo do que se trata, revela-se ignorante em política, história, sociologia, o que defende é apenas a reprodução do senso comum, é um direitista não por oportunismo ou falta de caráter, mas por falta de conhecimento.

            Assim, chegamos a uma interessante e derradeira conclusão, que o BOM SENSO nos permite: NO BRASIL, SE VOCÊ É DE DIREITA, DAS DUAS UMA: OU VOCÊ É UM IGNORANTE, OU VOCÊ É UM CANALHA. 

sábado, 18 de junho de 2016

PAPO DE BAR




"Ciência sociais? Éeee, fazer uma faculdade pra aprender papo de bar, é isso?"
Meu professor de Química do Ensino Médio quando ouviu minha resposta a sua pergunta sobre que carreira eu pretendia.



            A noite não estava exatamente ruim, até tava um clima agradável. Era quarta-feira, mas valia a pena tentar mais uma vez, alguma coisa, algum porquê, o que quer que fosse. O que exatamente? não se sabia e nunca se saberia. O dia que fosse sabido, a vida deixaria de existir em oposição e em consequência à morte, haveria somente o nada, ou seja, o mundo todo se tornaria uma série do Netflix; não haveria mais noites a serem desfrutadas e/ou purgadas, apenas caras assertivas e enredos pobres e previsíveis, porém viciantes - era nisso que Henrique pensava

- Traga uma breja...pode ser Antarctica mesmo...obrigado.
- E aí, Mano? Achou que eu não vinha mais, né?
- Achei que você tivesse se perdido por aí...
- Tava enrolado, demorou pra eu sair...rapaz, até que tem bastante gente nesse bar, hein? 
- É, tem mesmo, acho que ninguém mais aguentava ficar em casa.
- Pois é, mano, isso aí tava tenso. Cara, parece que no frio a galera enlouquece de um jeito diferente, sabe? É meio devagar, mas de uma maneira mais difícil de vencer, de se livrar...tá cheio de nego se matando...ou pirando de vez. Lá no meu prédio ouço uns relatos assim. 
- Pode crer. No fundo a gente não passa de bicho e precisamos de Sol, de claridade natural, tá ligado? Essa porra de vida dentro de escritório e com a fuça na tela de computador tá arrebentando com a humanidade, e vou te falar, que arrebente mesmo! 
- Hahahaha! Que misantropia é essa, rapá? Não era você o humanista? Não to te reconhecendo, hahahah!!!
- Mesmo os mais humanistas tem seus dias de incerteza. Cê tem visto o facebook? Tem lido os comentários feitos nos artigos do Sakamoto? do Safatle? Bicho, a galera tá extremamente boçal, mano, não sei de onde surge tanta burrice.
- Pode crer, não é fácil amar a humanidade desse jeito. 

               Uma linda ruiva senta-se numa mesa ao lado.

- Desse jeito é muito fácil, cara, hahahahha!
- Sim, facílimo, mas experimente conversar com ela, aí a coisa pode ser um pouco mais complicada.
- Conversar? Eu lá ia pensar em conversar? Hahahaha! Eu a amo!
- Tá com jeito de ter bebido algumas antes, hein? Tá romanticão pra caraio!
- Tô, cara, cê tá ligado.
- Meu, mas mudando de assunto, você tem acompanhado essa parada do impeachment? Eu sei que tá no Senado, montaram uma Comissão só com cuzeiro da direita e tal, mas e aí, como anda essa porra?
- Pô, mano, ainda hoje tava assistindo na TV Senado os trabalhos, como eles chamam. Uma bizarrice atrás da outra, cara, deprimente. Como você falou, a merda já começou na eleição do presidente e do relator da Comissão, o coxinha cupinxa do Aécio como relator, e um antigão do PMDB de presidente. Porra, todo mundo sabe que o PSDB e o PMDB querem porque querem o impeachemnt. Fora isso, o Cardozo requereu a juntada de documentos dentre os quais as escutas, aquela do Jucá e uma outra lá do Sarney, que deixam claro a existência do golpe. Aquele papo de trancar a lavo jato porque ela já havia chegado no ponto desejado, e impedir o prosseguimento para que não houvesse risco de atingi-los, cê ouviu dizer, né? 
- Sei, e o que mais?
- Bom, mas aí o Eduardo Cardozo requereu, também, que se fizesse uma auditoria internacional, sabe? O argumento dele foi o de que o mero parecer do TCU era insuficiente e um orgão internacional teria a necessária isenção. Que ce acha que a Presidência da Comissão do Impeachment decidiu? Nego! Por essas e por outras, o Cardozo disse que apesar de poder usar da palavra, não estava podendo exercer o direito de defesa. 
- Mas, Henrique, as escutas não fugiriam ao objeto do impeachment?
- Então, Carlos, foi esse o argumento para negar a juntada delas, mas não é correto, eu acho. Veja bem, o conteúdo das escutas remete diretamente ao impeachment.
- Hahaha, eu sei, só quero fazer você desenvolver os argumentos; eu também acho isso.
- Eu percebi, mas é bom praticar assim, estilo dialética, tá ligado, hahaha!

"O BRASIL SERIA MUITO MAIS DESENVOLVIDO SE TIVESSE SIDO COLONIZADO POR HOLANDESES"
- Mano, ouviu essa?
- O quê?
- O babacão na mesa da ruiva...
- Que que tem? 
- O cara mandando aquele papo batidaço dos holandeses e achando que tá abafando...aquela conversa de que se fossem os holandeses os colonizadores do Brasil nós viveríamos hoje num país desenvolvido...
- Hahaha, cara, eu sempre escuto isso, em todo o lugar. Foda, mano! Mas tá com jeito de que ele vai pegar a gata, ela deve ter curtido o papinho dele...
- Mas voltando naquela conversa do impeachment...
- Hum.
- E se o Senado condenar a Dilma? Mesmo sem respeitar o direito de defesa da maneira como vc tava dizendo, o que pode ser feito?
- Cara, disque há uma alternativa que é mover uma ação no STF argumentando que o julgamento é nulo por inobservância do direito à defesa e, subsidiariamente ,a absolvição por se tratar de um julgamento meramente político, sem fundamento jurídico.
- Ah, vc diz isso porque é aquela história, né, o julgamento do impeachment deve ser político e jurídico, ao mesmo tempo.
- Exatamente.
- Só, entendi. Mas, cara, vc falou de anular o processo por falta de defesa e tal...
- Sim.
- Tava pensando aqui, imagine uma outra situação. Pense num cara que realmente é culpado, escrotão...
- Você quer se referir a um pedófilo, estuprador...?
-É, tipo uma merda dessa, um caso terrível desses. E se houvesse espaço pra uma anulação da condenação seja porque faltou defesa ou qualquer outro erro lá...que você acha?
- Cara, pela lei o Ministério Público poderia mover nova ação penal, mas haveria o risco da prescrição, sabe?
- Sei, mas você acha isso justo?
- Hahahah, lá vem você querendo me provocar...hahahah....tá na pegada do Abujamra hoje...
- Hahaha, é, to mesmo, mas me diga, acha justo?
- Meu, você sabe, justiça é uma ideia equívoca...depende muito do enfoque que você queira dar. 
- Você tá fugindo, to percebendo...
- Hahahah, não é isso, mano. O que acontece é que falar de justiça pode ser querer comer a própria bunda, sabe, uma coisa non sense.
- Tipo comer cu de gato?
- É.
- Sei, mas não vai sair nada?
- Se você tiver paciência, sai, hahahah, mas acho que você vai rachar o bico da minha cara.
- Corre-se o risco, mas sei que você não liga pra isso.
- É, não ligo mesmo. Enquanto a gente presencia um golpe as pernas daquela ruiva não deixam de me enfeitiçar, sei lá, a vida é bonita, apesar de tudo. Mas vou te falar, Carlos, Direito e Justiça são coisas que nada tem a ver. É como disse o Lao-Tsé, "onde nasce o Direito, morre a Justiça", acho que foi assim que ele disse. Eu demorei pra entender isso, mas hoje acho que entendo. Na verdade a justiça é algo espontâneo, sabe, ela acontece não por obrigação, medo, ameaça, as pessoas simplesmente reparam o mal causado de forma espontânea, sem querer procurar motivo racional pra isso.
- Caramba, mano, que parada louca é essa, é meio hippie isso aí, né, hahaha!
- É, pode ser, e eu acho os hippies muito sábios, pra falar a verdade. Eles tão cheios de merda na barriga, como todo o mundo, mas têm a alma limpa, sabe?
- Mas, cara, cê não disse o que é Justiça pra você, tá enrolando!
- Ok, Carlos, vou mandar, mas você vai rir, bicho, eu to ligado.
- Manda.
- Justiça é amor.
- ...cara, bonito, hein?
- Mas por que você diz isso? De onde tirou?
- Veja bem, justiça é espontânea, não provocada. Se provocada, forçada, é Direito. Torna-se Direito por causa da sanção, da coerção, saca? O que leva a justiça acontecer, dessa maneira espontânea, é o amor, cara, o que nos liga enquanto seres humanos, o que dá sentido a nossa vida gregária, sabe?
- É, cara, acho que é isso mesmo...cê dixavou legal...

PÁAAA - FILHAAA DA PUTAAAA!!! DESGRAÇADOOOO!!!!
- Só uma batidinha de leve e o cara faz um escândalo desse aí, que otário da porra.
- É muito amor mesmo...hahahaha...
- Serviu pra ilustrar tua definição, hahaha...
- É, Henrique, o entusiasta dos batavos se deu bem...olha lá...
- Que parada! Fala um monte de merda, mas tá dando uns pegas na mina mais gata do rolê...
- Mas, cara, você tem razão naquela parada que vc disse, mano, sobre a justiça e coisa e tal.
- Talvez eu tenha, mas é só o que eu tenho, hahahahah....velho, acho que estamos ficando meio loucos, sabe, diletantes pra cacete!
- É, quem fala "diletante" só pode ser "diletante". Eu acho que vou nessa, amanhã tem trampo, foda!
- Pode crer, beleza, eu vou daqui a pouco. Pague umas três e deixe o resto comigo.
- Ok, figura, é "nóis"!

Enquanto Carlos tomava seu rumo, Henrique se levantava pra mijar. Caminhando até  o banheiro, pensou que às vezes saber demais é angustiante, e que esse pensamento já era batido pra porra, nada original. Na volta, trocou olhares com uma garota que cruzou, que se dirigia ao banheiro das mulheres. Sentou-se junto ao balcão, esperando que ela saísse. Deu certo. Conversaram e o papo foi bom. Foram pra casa dele. Riram, transaram e dormiram. Enquanto a gente ser esse bicho angustiado, assustado, inconveniente e absurdo pra caralho, só o amor nos salvará, acompanhado de ovo cozido servido no desjejum. Esqueça os colonizadores holandeses, eles não nos salvarão.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

SOBRE UM BÊBADO, CRIANÇAS E O SOFRIMENTO ALHEIO



Naquele tempo, a molecada vivia muito mais solta do que hoje. Esse lugar comum ilustra bem o que era minha vizinhança no início dos anos noventa. Claro que já existiam vídeo-games e pais super-protetores, mas tanto uns quanto outros não se comparavam à insanidade que se vê atualmente. Mesmo o mais nerd dos moleques passava boa parte do seu tempo na rua, de modo que toda aquela criançada convivia junto e crescia junto, conhecendo-se mutuamente através de conflitos ou de amizades  – quase sempre uma mistura de ambos.

Nunca um dia brincando na rua era igual ao outro. Seja porque as crianças não eram as mesmas, seja porque alguma trazia uma novidade, ou porque eventos aconteciam. E, para nós, eventos significavam algum animal diferente surgir do nada, algum novo guarda na praça, uma briga nova entre adultos, uma chuva torrencial, uma ventania...

As férias de verão eram absolutamente riquíssimas nesses eventos. Como a gente ficava até uma ou duas da manhã na rua, a chance de coisas loucas acontecerem aumentava. Foi numa noite dessas que um bêbado entrou com sua bicicleta bem no meio de onde brincávamos de mãe da rua. A figura parecia feliz em meio a toda aquela criançada. Abria um sorriso desdentado quase comovente. Não me recordo quem de nós atendeu ao seu primeiro chamado. Provavelmente deve ter sido o mais velho, Fabiano, se não me falha a memória, mas isso também não importa, o que importa é que o cachaceiro pediu que fôssemos até nossas casas ver se tinha alguma bebida pra ele. No instante em que ele disse isso, nós nos olhamos e quase por comunicação telepática diabólica, já sabíamos o que iríamos fazer. Nós dissemos ao bebum “espere aqui, nós já trazemos algo para o senhor beber”.

A minha casa era ao lado da rua em que brincávamos, de sorte que foi nela que entramos. Chegamos até a cozinha pelos fundos e fizemos um maravilhoso drink do mal. Um de nós mijou no copo; outro procurava o desinfetante; eu peguei o litro de cachaça;  o mais velho arrancava pelos do saco...Nós todos chorávamos de rir, estávamos quase em transe...mas contemos o riso quando voltamos à rua com o “coquetel”. Quando o velho cachaceiro viu o copo cheio, arregalou os olhos e disse “Deus é pai, que maravilha”. Pegou o copo e o virou numa talagada só, incrível! Nós ficamos tão boquiabertos que sequer foi necessário conter o riso. O velho fez uma expressão de ardência, mas durou pouco. Logo abriu aquele sorriso quase comovente. Montou na sua bicicleta e assim que pedalou se ouvia um som engraçado. A molecada havia grudado um copo vazio de água mineral entre os freios e o pneu, de modo que a cada pedalada saía um ruído agudo parecido com motor de fórmula 1.

O bebum já havia dobrado a esquina, quando meu irmão e eu decidimos segui-lo. Não consigo me recordar o que me motivou a fazê-lo, o caso é que montamos em nossas bikes e, chorando de rir, fomos atrás dele, sempre tentando fazer com que não nos percebesse. Seguimos o cachaceiro por dois ou três bairros, e chegou uma hora que ele parecia estar muito tonto, e que a qualquer momento se esborracharia no asfalto. Incrivelmente, o velho se mantinha na bicicleta, até que chegou numa curva já num bairro bem afastado e ao invés de virar o guidão ele simplesmente seguiu reto. A figura passou direto e mergulhou num matagal de um terreno baldio, desaparecendo. Nós chegamos até o terreno e, ao empurrarmos parte do mato, deu pra ver que se tratava de um barranco, mas, por estar noite, não conseguimos enxergar o bebum ou sua bicicleta. Nós rimos e voltamos pra casa. No caminho, me lembro de nossa euforia diminuir gradativamente. Quando chegamos de volta à nossa rua, a molecada queria saber o que havia acontecido ao velho, àquela altura apelidado de Motor Antarctica ou algo assim. Nós contamos que ele havia passado direto e sumido no mato. Toda a galera caiu na risada. E meu irmão e eu voltamos a rir euforicamente.


Quando fui dormir, já umas duas e meia da madrugada, não conseguia pegar no sono. Uma profunda tristeza tomou conta de mim e eu não parava de pensar naquele velho banguela. Senti muita pena dele e me lembro de ter chorado. Às lágrimas, me lembro de ter pensado sobre o porquê de algo tão engraçado ao mesmo tempo poder ser tão triste...Com oito anos de idade muita coisa me era inalcançável, e com certeza ainda é, mas aquela sensação de angústia e culpa me perseguiria sempre que eu percebesse que por trás do meu sorriso, prazer, deleite, estivesse algum sofrimento...Hoje, adulto, talvez seja essa experiência, ainda na infância, que me permitiu perceber, com certa facilidade, que em nosso mundo vivemos, em escala milhões de vezes aumentada e de maneira cotidiana, aquele evento com o velho; ou seja, um modo de se viver que provoca inúmeros deleites e euforias através de um mar de sofrimento alheio.  

domingo, 22 de novembro de 2015

CARTOLA E CHARLES BUKOWSKI TOMAVAM UMA NO BOTEQUIM DA ESQUINA

Os últimos dias não têm sido lá muito animadores. É tanta bosta acontecendo e sendo noticiada, que a galera tá se pegando em discussões sobre que merda fede mais. O que, evidentemente, não contribui pra porra nenhuma, mas as pessoas tomam partido e aí já viu, né?
Cerca da quinta parte do Estado de Minas Gerais pode ficar mergulhado em lama tóxica e mais um bocado do Espírito Santo (tão noticiando que mais barragens podem estourar – imagine só o nível da merda em se considerando as possíveis cagadas ainda não admitidas, e como a gente bem sabe, sempre há cagadas não admitidas) isso tudo em função de um puta CRIME AMBlENTAL, que eufemisticamente a nossa escrota imprensa insiste em dar o nome de “acidente” e/ou “tragédia”. Simplesmente, as podres de ricas das mineradoras, responsáveis pela cagada, pouco estavam se cagando pra possibilidade de as barragens se romperem. A única preocupação delas era garantir os lucros dos acionistas, como todo o ser humano minimamente lúcido sabe. O governo, por sua vez, tanto nos Municípios, no Estado e na União, foi conivente; aliás, como sempre é com as grandes mineradoras. O amor tórrido entre o Estado brasileiro e as grandes corporações que representam dinheiro rápido é absolutamente inquestionável. Nossos políticos não sentem tesão pelo “a longo prazo”, pelo “desenvolvimento social”; o que lhes excita é a grana correndo nos cofres, farta e imediata.
Em França, como dizem os pernósticos, o bicho pegou também. Mais de uma centena foi massacrada pelos maníacos do chamado Estado Islâmico - o Califado que pretende dominar todo o mundo árabe e inclusive as regiões que na IDADE MÉDIA fizeram parte do Império Islâmico (os portugueses e espanhóis que fiquem espertos...) e que declarou guerra ao Ocidente. A imagem de uma tragédia grega (ainda não escrita) em que a mãe é odiada e assassinada pelo próprio filho ilustra o porquê do Estado Islâmico. O Ocidente (que também somos nós, pois enquanto brasileiros, somos ocidentais, ainda que de perifa, ok?), na figura do mais ilustre dos seus representantes, ninguém mais ninguém menos que os Estados Unidos da América, É A MÃE DESSE MOVIMENTO TÃO BOÇAL. Ao contrário do que a molecada fascistinha anda postando no facebook, as atrocidades cometidas por esses caras não estão radicadas no Alcorão, simplesmente não decorre do islamismo. Sei que a maior parte das pessoas não é capaz de interpretar as coisas de um modo não hollywoodiano (décadas de lixo cultural embotaram suas mentes), ou seja, querem demonizar um grupo, e divinizar outro. Se os muçulmanos fossem tão ruins assim como dizem, rapaziada, possivelmente nem eu nem você existiria. Vou me explicar melhor. Os árabes ocuparam o que hoje é a Espanha e Portugal, certo? Certo. Pois bem, sei que você não gosta dessa conversa, mas agüente firme, no final vai lhe fazer bem. Me diga uma coisa, durante essa ocupação árabe você já ouviu falar de imposição da religião muçulmana em cima dos cristãos? De terem arrancado a cabeça dos infiéis? Se você ouviu alguma coisa assim, sinto lhe dizer, você não sabe PORRA NENHUMA de história! Os árabes respeitavam as religiões diversas e eram bem menos hostis que os invasores romanos, meu caro (você se recorda do que os nossos antepassados “civilizadíssimos” romanos aprontaram com os judeus? E com a galera de Cartago...?). O principal interesse deles era comercial. E, assim como os romanos, foram os responsáveis pelo desenvolvimento cultural das regiões em que ocuparam. Inclusive, há quem sustente que as grandes navegações ibéricas só ocorreram a partir dali justamente por conta dos avanços tecnológicos trazidos pelos mouros (esses barbudos que você não gosta) Isso sem contar que foi graças aos árabes ( narigudos, de olheiras, pele trigueira, cabelos negros...) que a herança cultural grega chegou até nós. Se não acredita, pergunte ao seu professor de história.
Na África, “por incrível que pareça”, o bicho continua pegando. As contínuas e insanas lutas tribais (muito bem armadas pelas potências ocidentais, frise-se) têm martirizado o povo africano e a notícia de centenas e centenas de mortes tem sido freqüente. Tretas na Nigéria, na Líbia, Sudão...No Oriente Médio, uma guerra civil que  não tem fim. O resultado disso são milhões de refugiados, que simplesmente lugar nenhum do mundo quer por perto, por vários motivos, inclusive os mais mesquinhos que você pode imaginar. Os autodeclarados cristãos, inclusive, se esquecem dos ensinamentos bíblicos e se prendem à conversa xenófoba dos lunáticos apocalípticos que acabam ganhando platéia em tempos difíceis. É foda!
O mundo é um moinho. Cass, a garota mais linda da cidade, simplesmente não consegue suportá-lo. Não que seja um problema dela. O problema está no mundo. É o mundo que não a aceita como ela é. Ele até a quer, mas de um jeito que Cass não consegue ser. Ela prefere desaparecer a ter que ser como o Espremedor quer. A mestiça de índios cherokee e irlandeses  - eu a imagino assim -, incapaz de fingir sentimentos, de recolher o choro ou de esconder sua felicidade, não dava a mínima para as notícias dos outros continentes. Não que ela não sofresse pelos outros; muito pelo contrário. Ela só não conseguia fingir interesse por algo que não pertencia à verdade dela, ao mundo dela. Cass estava inteira em cada situação, em cada alegria, em cada dor; ela intuía que aqueles sujeitos engomados que comentavam os assuntos na TV eram mortos vivos, incapazes de realmente sentir algo, e que tudo aquilo era uma puta falcatrua, uma baita picaretagem. Para Cass, eles não passavam de abutres. A linda mestiça ajudava as pessoas pobres que conhecia, e nunca se gabou disso; não por temer passar por orgulhosa ou arrogante, mas porque sabia que tudo o que pudesse fazer por essas pessoas não seria o suficiente para salvá-las. Cass sentia toda a dor do mundo na figura de um só mendigo, ou de um só bêbado derrotado na calçada do bar. Ela vibrava nas ondas do ambiente. Ela era toda empatia. Um dia, Cass desistiu, antes que o mundo a moesse.
O editor alemão do Bukowski o convidou para passar uns dias no Rio de Janeiro. Sigfried, o editor, há muito conhecia o verão carioca e estava em falta com o velho Buk. Teria sido impossível convencê-lo se não fosse a caipirinha (Sigfried o levou para um bar, em L.A., que servia o drink, e disse ao Hank que no Brasil era ainda melhor) e a promessa de editar seus livros no Brasil e apresentar belíssimas cariocas. Charles Bukowski sempre ouvira dizer sobre a beleza das brasileiras e perguntou e reperguntou a Sigfried sobre esse mito. O editor, como bom alemão que era, disse que não havia em lugar nenhum do mundo mulher mais bonita. E, empolgado, disse a Bukowski que não só as mulheres, mas a música carioca era a melhor do mundo. O velho Buk não respondeu; pensou que o editor estivesse tão bêbado que já estava no grau de falar bosta.
Era fevereiro. Rio 40 graus.  Hank e o editor alemão tomavam uns tragos num botequim. Sigfried insistia num papo de que faria uma surpresa ao velho Buk. Hank já estava na lona, não queria mais conhecer mulheres. Havia tentando umas, levou uns tapas, broxou, foi foda. Estava com preguiça de começar tudo aquilo de novo. E o calor carioca era surreal. Mas Sigfried lhe disse que não era uma outra garota, mas sim um poeta. Logicamente, o Bukowski ficou mais puto ainda: “porra, Sig, você sabe que eu odeio poetas!” Sigfried riu, e disse que era um poeta brasileiro, o melhor letrista e sambista que o mundo já teve. Nessa altura, Bukowski já havia conhecido o samba-canção, o choro e a bossa nova. Tinha ficado com o samba canção e a caipirinha.
E não é que ninguém mais ninguém menos que Cartola apareceu no botequim? O alemão abriu um sorriso que o Buk jamais havia visto naquela fuça tão sisuda. Em português, insistiu para que o homem se aproximasse. Fez as honras. Incrivelmente, Charles Bukowski logo simpatizou com Cartola. Em geral, se dava bem com homens negros, a vida lhe havia ensinado a sabedoria que essa gente tem. No momento em que botou os olhos no Cartola calculou que aquela cara toda detonada, aquele corpo magro, era pura poesia. Via um homem feio, mas que ao mesmo tempo era incrivelmente belo, como uma divindade. Talvez a bebida tivesse ajudado. O caso é que os três beberam e riram muito. O astuto Sigfried, o editor, habilmente fazia a tradução.
O mundo, esse gigante moinho, não parou de moer e estourar enquanto os três estavam juntos. Claro que não. A jovem mulata teve seus sonhos triturados. Cass havia cortado, pela última vez, seu belo pescoço igualmente mestiço. Mas havia a possibilidade, o porvir. Se existe solução para todo o sofrimento do mundo ela mora exatamente no mesmo lugar de onde surgem todos esses sofrimentos, como soro pra veneno de cobra: está na nossa diferença. Se você tem tanto orgulho daquilo que você é (negro, branco, índio, gay, gigolô, muçulmano, judeu, traveco...) saiba, querido, que você só é porque outro não é, ou seja, num mundo em que todos se tornassem exatamente iguais, as suas singularidades desapareceriam, VOCÊ DESAPARECERIA. Se você ainda não entendeu, agora vai: o que seria do Corinthians sem o Palmeiras? Portanto, porra, se você precisa de motivos para amar, ame as outras pessoas porque elas são condição pra você ser o que você é. Cass não precisava de motivos. A jovem mulata também não. Quem sabe um dia você também não precisará? Quem sabe...

domingo, 12 de julho de 2015

HETERODOXIA

Eu me sentia um estúpido completo. Você tinha toda a sorte e toda a razão. Existia uma queda de braço imaginária e nela você ganhava de mim de lavada. A minha pretensão de saber de alguma coisa se foi. Seus olhos, apesar das olheiras, estavam mais vivos e brilhantes do que nunca. Seu sorriso, ainda que mais amarelado, permanecia lindo. Pode ser que tenha sido sem intenção, mas você me derrubou. As minhas palavras, que antes as havia ensaiado em minha cabeça, não surgiram quando delas precisei, e talvez mesmo que aparecessem, não iriam servir para evitar nada. Meu corpo falou por mim. Baixei os olhos, pintei de cinza minha expressão, meus ombros se encolheram. Você pôde perceber, mais uma vez, que havia vencido, e isso fez seus olhos ainda mais brilhantes, e seu sorriso mais belo. Quando me despedi de você, o que já havia de quebrado dentro de mim passou a me perfurar, vagarosa e dolorosamente. Tentei me consolar pensando que não podia ser de outra maneira, afinal eu havia sido derrotado.
Nosso encontro ficou na minha lembrança como um doce pesadelo. Nossa história ganhou mais esse estranho capítulo. Me senti culpado por me permitir sofrer daquela maneira, ainda que soubesse não haver outra solução. Você continuará com o seu sorriso despreocupado, e eu possivelmente enlouquecerei aos poucos, pagando por minha heterodoxia.

Haverá um dia em que eu montarei em você como um lobo faminto e você me desejará. Mas, nesse instante, não será mais amor o que eu sentirei por você. Como o amor nos afastou, talvez a falta dele nos atraia.

terça-feira, 30 de junho de 2015

FATALIDADE

“Silêncio é a porta do céu,
No nada há a verdadeira sabedoria”
Ele pensava,
E naquele mesmo instante
O cavalo monta na égua
Caminhões vomitam diesel pela rodovia
A vida pulsa violentamente na forma de roncos de motores e de relinchos bestiais
Enquanto as bactérias, insistentemente, faziam, dentro dele, o trabalho sujo

E tudo seria tão especial...
Tudo seria tão especial se não fosse mera fatalidade.