RESILIÊNCIA: s.f. Figurado. Habilidade de se adaptar com facilidade às intempéries, às alterações ou aos infortúnios.
Pensando bem nem era pra eu ter
parado ali. Certamente havia coisas muito mais interessantes e prazerosas a
serem feitas, mas nem sempre sabemos se efetivamente as realizaremos, tudo às
vezes morre no hipotético - talvez esse seja o segredo do sucesso, vencer o
hipotético; ta aí um bom mote pra livro de autoajuda, ou uma bosta de um mote,
seja como for autoajuda é sempre um sucesso, o que denuncia o nosso fracasso, ao menos no plano do hipotético...
O caso é que, atendendo ao chamado de
um antigo colega de escola, me vi sentado na mesa do bar de esquina. Era na
calçada e, por poder ver o céu e o movimento da rua, a chateação diminuía
consideravelmente.
Além de mim e do cara, estava sentado à mesa
um casal na faixa dos 40. O homem era forte e sorridente, meio bobo alegre; a
mina era bem magra, de aspecto nervoso e emotivo (o que quase sempre não indica
boa coisa), cabelos lisos e negros, aparentemente meio ensebados e tinha
olheiras profundas, das que dão em pessoas que dormem muito mal ou sofrem de alguma forma de desnutrição, ou alguma talassemia, coisas assim...
Esse meu ex-colega da escola puxou
antigas histórias – muitas das quais eu não me recordava. Não sei se por ser
muito gente boa, ou por ter um senso de humor muito fácil, o quarentão ria de
tudo, e não era um riso que incomodava, era caloroso. Você com certeza iria
querer tê-lo como irmão, vizinho ou colega de trampo. A mina dele, por sua vez,
fazia uma cara enfezada, mas não parecia ser em razão de estar ali. Ela olhava
para as pessoas e franzia a testa,
parecia afetar-se, comover-se, talvez imaginando o que as pessoas diziam ou
pensavam. Os caras, contudo, não se davam conta, ou fingiam não se importar com
a estranha expressão da mulher.
Houve um momento, então, que ela
entrou na conversa. Não me lembro qual foi o gancho que pegou, mas quando dei
por mim ela estava falando da horrível situação das escolas públicas, relatando
eventos trágicos e, como uma atriz decadente, torcia a cara das mais variadas
formas para gerar comoção. Sua voz era estridente, metálica e meio falhada. Parecia
estar doente ou, quem sabe, ser doente. O maridão, incrivelmente, não mudava
sua expressão plácida. Ela disse muitas outras coisas, muito provavelmente sem
sentido, o caso é que numa certa altura não prestei mais atenção. O que
realmente me fascinou foi o maridão, que candidamente parecia não se
incomodar. Eu me perguntava como o cara agüentava aquilo, imaginava como seria
o cotidiano com aquela mulher, como seria transar com ela, ou pedir pra que
pegasse um copo ou passasse o azeite...
Talvez pensando o mesmo que eu, já
incomodado com a figura, meu ex-colega deu uma cortada na mina. A reação dela,
porém, foi desagradável. Passou a falar mais alto e exagerar nos gestos, o que
resultou na queda de dois copos e uma garrafa na calçada. Nesse instante, olhei
pro seu marido, esperando que a placidez sumisse. Que nada! O cara continuou
sorrindo, como um bonecão de cera.
O garçom veio pra limpar a coisa
toda, mas a mulher não deixou, teimou que iria limpar. No que levantou pra
pegar os cacos, escorregou e caiu tão rapidamente, que seu marido não conseguiu
segurá-la. A queda foi plástica, estilizada, daquelas em que a pessoa se
espalma no chão, cai por inteiro. Nem preciso dizer que a galera do bar se
manifestou na forma de berros e grunhidos típicos de seus frequentadores –
gente entediada esperando que algo aconteça, por mais idiota que seja, como se
sabe.
O maridão a levantou, fez-lhe um
carinho na testa e cabelos, beijou-a e, apesar de todo o afago que a ela
dispensou não foi exitoso na tarefa de fazer daquela cara algo menos horrível –
a expressão de sua mulher estava mais assustadora que antes.
Pensei que, após a queda, ela ia
ficar com a cara fechada e pronto. Mas que nada. Dali em diante, sua voz ficou
mais poderosa e, enquanto voltava a detonar o sistema público de educação e,
ingenuamente, botar a culpa nesse ou naquele político, notei que meu ex-colega
já estava se incomodando, meio que se sentindo envergonhado pelo seu amigo, o
maridão. Quem olhasse pra mesa ia presenciar uma cena deprimente - uma mulher aparentemente ensandecida falando como se estivesse discursando para uma platéia interessada, quando na verdade era dois entediados e uma figura aparentemente desprovida de capacidade crítica.
O monólogo dela deve ter se estendido
por algo em torno de meia hora. Nesse tempo, refleti sobre as muitas formas de
loucura e que talvez a resiliência fosse uma delas. “Como esse cara agüenta?
Será que ele conheceu outras mulheres? Será uma promessa paga? Uma herança?
Devem levantar um busto em sua homenagem...”
De repente, noto que algo faz mudar a
cândida expressão do marido. Ele olha com atenção, franzindo a testa, na
direção de um vigilante motoqueiro - desses que trampam de fazer ronda apitando
no período da noite - que dobrava a
esquina. Eu imaginei que havia algo grave acontecendo naquela direção, tipo um
mendigo sendo agredido, uma mulher apanhando, mas não, o cara olhava era mesmo
para o motoqueiro. O vigilante, ao se aproximar um pouco do bar, apitou. No
instante do apito, o maridão franziu todo o rosto, como se estivesse tomando um
choque ou uma picada, e nos disse, numa fala ansiosa, em volume alto e
estridente, que em nada fazia lembrar seu comportamento anterior, parecia vindo
de outra pessoa: “EU ODEIO ESSA PORRA DESSE APITO!!!”
Voltando pra casa deduzi que tamanha
resiliência tinha seu preço.
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