Antônio Carlos acorda enjoado. Uma manhã que mais está para tarde. Bota
os pés no chão umas onze e quarenta e, olhando pela janela, percebe que o Sol
está a pino. Uma tranqüilidade salpicada por melancolia o acomete, o que faz a
sensação de enjôo apertar. É feriado.
Em dias comuns, àquele horário estaria no trabalho, o que possivelmente o
impediria de ter pensamentos confusos ou reatar lembranças perdidas, que
deveriam estar para sempre desaparecidas. Esta seria a razão pela qual a ordem
social pautada pela labuta ainda impera. Foi o que rapidamente pensou. Como
mora só, bebe o café que ele mesmo prepara. O calor o convida para uma ducha.
Sente um bem-estar passageiro. Olha-se no espelho, pensa na fatalidade do
tempo, no quanto ainda se transformará. Lembra-se de que não há nada para comer
no almoço. Terá de sair, mas não está com disposição alguma.
Umas duas da tarde, resolve sair em busca do que comer. A forte luz do
dia lhe inebria. Caminha quase sem olhar a calçada, como se instintivamente, às
cegas. Chega a pensar que se trombar com algo seria até divertido, afinal algo
aconteceria. Sabe que já houve épocas mais felizes. As pessoas lhe cruzam, ele
passa por elas, mas não as olha. Sente que também não olham para ele. A elas
ele está absolutamente indiferente. Isso lhe proporciona um estranho prazer,
que imagina ser apenas seu, e talvez o seja.
No supermercado, a luz artificial e a necessidade de encontrar aquilo de
que precisa, o fazem abrir completamente os olhos. Por conta disso, é obrigado
a perceber as cores das pessoas, suas formas, cabelos. Os rótulos insanos de
produtos absolutamente desnecessários. O sorriso doentio dos empregados, derivados
de uma esperança infundada e desesperada de que dias melhores virão. O estabelecimento
faz Antônio Carlos se saber só, se perceber muito diferente do resto de
todo-o-mundo. O supermercado, pensa, é a Igreja dos nossos dias, o local onde a
salvação e a loucura estão amalgamadas. A Imagem de um gigantesco polvo e seus
tentáculos surge em sua mente. Como fugir dos tentáculos do NADA? Se pergunta.
Sabe, porém, que sua fuga será necessariamente solitária. A fome aperta, e ele
está num supermercado. Seu estômago ronca, e sente uma forte vontade de mijar.
Decide por um pacote de macarrão e um maço de brócolis. Não se recorda se
o coletivo de brócolis é maço ou ramo, imagina até que pode ser diferente. Não
abre mão de duas cebolas e alguns tomates. Ovos e alhos já havia em casa. Ao
passar sua exuberante compra, repara na atendente do caixa: uma moça
aparentemente suburbana, ainda deslumbrada por trabalhar numa rede de
supermercados, e que com o primeiro ou talvez segundo salário, pôde dar um
jeito nos dentes e colorir os cabelos. Antônio Carlos pensa sobre o quão
efêmero era aquele orgulho vindo da atendente. Imaginava ele que poucos meses a
faria sínica e deprimida. Ela se daria conta de sua real condição, e seria a
partir daí que a jovem poderia ter alguma salvação. Outra possibilidade, a
pior, era a de que não perceberia a sua situação, e acabaria mais e mais
alienada, entorpecida por um parco poder de compra, endividada pelo uso do
cartão de crédito, enganada por anúncios publicitários, pelas pessoas,
estimulada a, gradualmente, se aniquilar. Quando notou os saltados olhos negros
da atendente, calculou que a segunda possibilidade era a mais crível. Nesse
momento, ouve uma voz, em certa medida rouca, que eclode daquela boca de
grossos e bezuntados lábios: É CRÉDITO OU DÉBITO? Antônio responde com uma voz
quase inaudível, vez que estava há muitas horas sem dizer nada: Débito...
Chega em casa. Prepara o almoço. Evidentemente sem qualquer entusiasmo.
Liga a TV enquanto cozinha o macarrão. Vê que a merda toda continua, e que uma
ou outra protuberância faz-se surgir na forma de um novo modismo escroto, ou um
novo e insistente apelo marqueteiro absolutamente deprimente. Por alguns
instantes se dedica a pensar sobre a vida que os executivos da TV levam. Pensa
nas reuniões que realizam. Orgulha-se, ainda que quase quixotescamente, que seu
perfil não induz a novas discussões sobre a estética do que é vendável. O
macarrão cozinha, Antônio Carlos acrescenta o brócolis, é sem dúvida uma
refeição digna. Boceja. Olha o relógio. São 9 da noite. Lembra-se de continuar
uma leitura que lhe pareceu interessante. Ao ter o livro em suas mãos, observa
todas aquelas palavras e, espontaneamente, raciocina que durante aquele dia
seus pensamentos, se transformados em palavras, provavelmente corresponderia a
alguns livros... É aí que, pasmo, se confronta com a realidade de que durante
todo aquele dia, a despeito de tudo o que havia pensado, do vasto universo de
palavras que dançaram em sua mente, apenas quatro a ele foram ditas: É
CRÉDITO OU DÉBITO.