Naquele
tempo, a molecada vivia muito mais solta do que hoje. Esse lugar comum ilustra
bem o que era minha vizinhança no início dos anos noventa. Claro que já
existiam vídeo-games e pais super-protetores, mas tanto uns quanto outros não
se comparavam à insanidade que se vê atualmente. Mesmo o mais nerd dos moleques
passava boa parte do seu tempo na rua, de modo que toda aquela criançada
convivia junto e crescia junto, conhecendo-se mutuamente através de conflitos ou
de amizades – quase sempre uma mistura
de ambos.
Nunca
um dia brincando na rua era igual ao outro. Seja porque as crianças não eram as
mesmas, seja porque alguma trazia uma novidade, ou porque eventos aconteciam.
E, para nós, eventos significavam algum animal diferente surgir do nada, algum
novo guarda na praça, uma briga nova entre adultos, uma chuva torrencial, uma
ventania...
As
férias de verão eram absolutamente riquíssimas nesses eventos. Como a gente
ficava até uma ou duas da manhã na rua, a chance de coisas loucas acontecerem
aumentava. Foi numa noite dessas que um bêbado entrou com sua bicicleta bem no
meio de onde brincávamos de mãe da rua. A figura parecia feliz em meio a toda
aquela criançada. Abria um sorriso desdentado quase comovente. Não me recordo quem
de nós atendeu ao seu primeiro chamado. Provavelmente deve ter sido o mais velho,
Fabiano, se não me falha a memória, mas isso também não importa, o que importa
é que o cachaceiro pediu que fôssemos até nossas casas ver se tinha alguma
bebida pra ele. No instante em que ele disse isso, nós nos olhamos e quase por
comunicação telepática diabólica, já sabíamos o que iríamos fazer. Nós dissemos
ao bebum “espere aqui, nós já trazemos algo para o senhor beber”.
A
minha casa era ao lado da rua em que brincávamos, de sorte que foi nela que
entramos. Chegamos até a cozinha pelos fundos e fizemos um maravilhoso drink do
mal. Um de nós mijou no copo; outro procurava o desinfetante; eu peguei o litro
de cachaça; o mais velho arrancava pelos
do saco...Nós todos chorávamos de rir, estávamos quase em transe...mas contemos
o riso quando voltamos à rua com o “coquetel”. Quando o velho cachaceiro viu o
copo cheio, arregalou os olhos e disse “Deus é pai, que maravilha”. Pegou o
copo e o virou numa talagada só, incrível! Nós ficamos tão boquiabertos que
sequer foi necessário conter o riso. O velho fez uma expressão de ardência, mas
durou pouco. Logo abriu aquele sorriso quase comovente. Montou na sua bicicleta
e assim que pedalou se ouvia um som engraçado. A molecada havia grudado um copo vazio de água mineral entre os freios e o pneu, de modo que a cada pedalada saía um ruído
agudo parecido com motor de fórmula 1.
O bebum já havia dobrado a esquina, quando meu irmão e eu decidimos segui-lo. Não
consigo me recordar o que me motivou a fazê-lo, o caso é que montamos em nossas
bikes e, chorando de rir, fomos atrás
dele, sempre tentando fazer com que não nos percebesse. Seguimos o cachaceiro
por dois ou três bairros, e chegou uma hora que ele parecia estar muito tonto,
e que a qualquer momento se esborracharia no asfalto. Incrivelmente, o velho se
mantinha na bicicleta, até que chegou numa curva já num bairro bem afastado e
ao invés de virar o guidão ele simplesmente seguiu reto. A figura passou direto
e mergulhou num matagal de um terreno baldio, desaparecendo. Nós chegamos até o
terreno e, ao empurrarmos parte do mato, deu pra ver que se tratava de um
barranco, mas, por estar noite, não conseguimos enxergar o bebum ou sua
bicicleta. Nós rimos e voltamos pra casa. No caminho, me lembro de nossa
euforia diminuir gradativamente. Quando chegamos de volta à nossa rua, a
molecada queria saber o que havia acontecido ao velho, àquela altura apelidado
de Motor Antarctica ou algo assim. Nós contamos que ele havia passado direto e
sumido no mato. Toda a galera caiu na risada. E meu irmão e eu voltamos a rir
euforicamente.
Quando
fui dormir, já umas duas e meia da madrugada, não conseguia pegar no sono. Uma
profunda tristeza tomou conta de mim e eu não parava de pensar naquele velho
banguela. Senti muita pena dele e me lembro de ter chorado. Às lágrimas, me
lembro de ter pensado sobre o porquê de algo tão engraçado ao mesmo tempo poder
ser tão triste...Com oito anos de idade muita coisa me era inalcançável, e com
certeza ainda é, mas aquela sensação de angústia e culpa me perseguiria sempre
que eu percebesse que por trás do meu sorriso, prazer, deleite, estivesse algum
sofrimento...Hoje, adulto, talvez seja essa experiência, ainda na infância, que me permitiu perceber, com certa facilidade, que em nosso mundo vivemos, em escala milhões de vezes aumentada e
de maneira cotidiana, aquele evento com o velho; ou seja, um modo de se viver que
provoca inúmeros deleites e euforias através de um mar de sofrimento alheio.
O crescermos torna triste o que outrora era chiste.
ResponderExcluirGK
Consigo perfeitamente, sentir a mesma dor que você sentiu naquela noite! Mas...há uma dor que dilacera meu coração a cada instante, todos os dias da minha vida: Há em todos os cantos do mundo...crianças que se tornaram adultos e pra meu pavor,sua diversão, sua forma de se tornarem destaque diante da sociedade desumana e dominante, é exatamente...deleitarem-se eufóricamente..."através de um mar de sofrimento alheio!"
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