sexta-feira, 26 de julho de 2013

OLHOS AZUIS CINZA



Era uma manhã fria e eu custei a levantar. Tinha de, porém. Era o dia de fazer o exame da proficiência, uma bagaça necessária para o mestrado. A prova seria na cidade universitária, e era domingo.

Poucas linhas de ônibus e, se não bastasse, começou a chover. Peguei o primeiro busão que passaria no metrô, e resolvi chegar até a USP pela linha amarela. Metrô lento, e uma vez na estação Butantã demorou até que eu descobrisse de onde saía o ônibus para o campus, isso porque sou tão lento quanto o transporte de São Paulo, Capital.

As demoras se somaram e eu estava quase atrasado. Isso me forçou a, assim que descesse do ônibus, correr até o prédio onde seria aplicada a prova. Lá chegando, a sala estava cheia, e eu, suado.

Até aí, tudo bem. Deslocar-se em São Paulo aos domingos quando não se tem carro pode ser fora de mão, como dizem. O importante é que cheguei a tempo. Não imaginava que tão a tempo, isso porque o cara que ficou de aplicar a prova cismou com o forro da sala, e deixou de nos dar o caderno de questões até que resolvesse a parada. Havia uma placa meio solta, e o vento forte lá de fora estava formando uma corrente de ar. O japa que estava logo abaixo da placa parecia assustado. Chamaram um servente, que apenas olhou e disse que era assim mesmo. Superada essa questão, aplicou-se a prova. Aí não ficou mais tudo bem...

Havia realmente me preparado para aquele exame, mas a prova estava absurdamente difícil. Em casa tinha feito as últimas três ou quatro provas e me saí bem. Não fiquei nervoso, nem nada, mas me deu um quê de desânimo. Apesar disso, fiz tudo até o fim, mas não saí confiante, nem desconfiante, pois vai saber, e se, de repente, eu passei?

Resolvi a questão aceitando o fato de que, na pior das hipóteses, prova tem sempre e todo o ano. Com isso na mente, caminhei até o ponto de ônibus mais próximo. Antes que lá chegasse, percebi uma garota de traje punk falando ao telefone. Ao me aproximar mais, notei seu sotaque, era soteropolitano. Pensei no Camisa de Vênus, e ela parecia ser uma versão mulher do Marcelo Nova. A mina não largou o telefone, continuava tagarelando com alguém que parecia ser uma amiga ou confidente, absolutamente irrelevante.  O que me ferrou é que eu estava sem fone de ouvido (havia-o estragado em casa quando saí com pressa) e tive de ouvir toda aquela ladainha sobre aceitação e comportamento sem sentido dos homens.

Do nada, surgiu uma figura que se sentou ao meu lado. Era um cara meio coroa, na casa de uns 38, 40 anos. Um tanto alto, um tanto magro, cabelos loiros grisalhos e olhos azuis. Eram azuis cinza. Só percebi o quão cinza eram seus olhos no instante em que se virou para mim e perguntou se os ônibus realmente passariam. Começamos a conversar, e em poucos minutos deu pra notar algumas suas excentricidades, na medida em que se abria sem ao menos saber meu nome.

O cara me disse que fez a prova de proficiência, mas que não havia estudado nada. Saíra de Bragança Paulista, e não iria desistir caso não passasse. Um professor do cursinho que frequentava lhe disse para jamais desistir. Havia dito a sua esposa que faria, custasse o que custasse, o mestrado. Enquanto falava sem parar, chegaram mais pessoas no ponto. Elas davam uma olhada para nós e logo se davam conta da minha sorte.

O ônibus chegou e subimos. Sentei e a figura sentou-se, é claro, ao meu lado. Continuou falando sobre estudos, carreira, anseios, planos. Eu apenas concordava, monossilabicamente. Quando cansava dos monossílabos, entoava o seguinte dizer: “no que faz muito bem”. O que realmente me espantava, nessa altura, não era mais o fato de o personagem ter se aberto sem saber quase nada sobre mim, mas sim a sua incapacidade de perceber a minha falta de interesse naquela conversa. Era realmente espantoso.

Nas ruas da cidade universitária, o motorista do ônibus esbanjava seu espírito arrojado, aventureiro. Fazia curvas correndo uns 80 por hora, e a força centrípeta agia sobre nós. Diante disso, meu parceiro reclamava. Apesar do desconforto das curvas bruscas, achei bom que de repente se interessasse por outra coisa e se preocupasse com o motorista. Mas, rapidamente, voltou a sua explanação sobre carreiras jurídicas. Tive a certeza que a viagem até a estação Butantã seria lenta.

Demorou, mas chegou. Uma vez na estação, porém, foi que me dei conta de que ali só havia um sentido para os trens, de modo que provavelmente aquele cara iria me acompanhar. Na verdade, eu já estava preparado para isso, e resolvi deixá-lo a seguir e a falar. Eu permanecia nos monossílabos.

No vagão do trem da linha amarela foi que a coisa ficou feia. Ele me perguntou sobre o que eu fazia, e eu disse. Na minha resposta citei minha passagem por um gabinete de desembargador da área criminal, e isso foi a fagulha para o incêndio. Romualdo (naquele momento já sabia seu nome, pois acontecera de o sujeito referir-se a si mesmo e chamar-se pelo nome ao reproduzir diálogos que travara) se empolgou e disse que “atuou” como advogado criminalista. Bom, até aí, nada constrangedor. Mas, sem que eu levantasse a bola, passou a contar uma história de que defendera um cara acusado de estupro. Não questionei nada sobre os detalhes, mas isso não foi preciso para que Romualdo contasse todos os meandros, todas as especificidades daquele caso. Enquanto falava em alto e bom som: “O sêmen não era dele”; “A penetração não foi profunda o bastante”; “não houve coito anal”; “a vulva estava incólume”; – os passageiros em volta olhavam espantados para ele, e o cara não se tocava que perto de nós havia crianças, pessoas idosas, gente amontoada. Foi aí que, como se eu tivesse apertado uma função “stand by” na minha mente, deixei de ouvir o que ele dizia, e prestei atenção apenas em sua expressão. Seus olhos estavam mais cinzas que azuis, e assustadoramente vítreos. Internamente, me perguntava sobre como é possível alguém ter tão pouca sensibilidade, simplesmente não notar que ali não era o momento de dizer aquelas coisas e daquela forma? Travei um embate sobre a necessidade de dar um toque no cara, ou deixar que uma hora ele se desse conta. Tenho uma tendência a intervir o menos possível quando se trata da liberdade alheia, mas, mesmo assim, a primeira opção fez-se vitoriosa. Resolvi mudar de assunto. Foi quando Romualdo me disse que iria descer, mas que gostaria de me reencontrar na prova de segunda-feira. Eu lhe respondi, dizendo: vá pela sombra! Pensei se um dia me tornaria daquele jeito, ou mesmo, se já assim não sou. Quem sabe o quão desagradáveis podemos ser?












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