quinta-feira, 17 de outubro de 2013

SENTE-SE



      Fazia um belo dia de Sol em Ourinhos. Eu o vivia sentado num banco. Mais de meio dia já se passava e a luz ganhava em encanto. Um amarelo vivo banhava a calçada e a relva. O sabiá cantava com força seu tempo de amor. Pensava na impetuosidade da vida, na energia das criaturas, na beleza da existência, a despeito da aparente ausência de sentido ou finalidade.

      Podia ficar por ali mais uma hora, uma hora e meia. Tomaria o ônibus para São Paulo só às três e meia da tarde. O bem-te-vi ganhava do sabiá na séria brincadeira de quem cantava mais forte, no instante em que eu fechava os olhos para melhor sentir a luz do sol e o vento fresco que fazia música nas folhas das palmeiras ao mesmo tempo em que carregava o aroma das flores do ipê amarelo, todo florido.

     A araponga brincava com o coquinho no bico. Armava voar e desistia, cansada. As rolinhas voavam de e para todos os lados, fazendo pingos de sombra. Entre essas, uma diferente surgiu e me chamou a atenção. Era a sombra de um homem, que caminhava em minha direção. Foi o suficiente para que eu o olhasse, e despercebesse o espetaculozinho de luz, calor, plantas e pássaros que se fazia até então. O que vi foi um homem velho, pardo-bronzeado, de rala-barba-branca e cabelos ralos. Vestia-se dignamente, como os antigos gostam de se vestir. Ao aproximar-se, notei que estava sujo e com a roupa rasgada em algumas dobras, porém. Me acenou com a cabeça e se sentou ao meu lado esquerdo. Eu devolvi o aceno, sem dizer palavra.

      Não tive o desejo de me levantar dali, apesar de o velho não cheirar bem. Pensava que isso poderia ofendê-lo, já que naquela praça havia outros bancos vazios e ele havia feito questão de se sentar ao meu lado. O cheiro já não estava tão ruim, cheirava a tabaco. Ele havia tirado do bolso um maço de Derby, acendido um e oferecido para mim. Recusei, dizendo que não fumava, mas que muito agradecia. Tentei voltar à contemplação, caçando ideias em minha mente, reatando pensamentos. O que vinha, no entanto, eram possíveis diálogos que eu poderia propor com aquele senhor, os quais foram prontamente sufocados pela conclusão de que ele parecia querer ficar calado e, como eu, observar o dia.

        Por curiosidade, somente, quis olhar melhor sua face. O nariz adunco, pronunciado, sob uma pele bronze e esturricada, um rosto como digno monumento a representar nossa organicidade em face da totalidade da vida. Das forças inorgânicas que nos possibilitam e nos terminam, simplesmente, tragicamente. Suas têmporas ossudas pareciam anunciar que ali se tinha um homem que, apesar de velho, era forte. Ele tragava a fumaça de seu tabaco, sem demonstrar prazer ou dor. A expressão, imutável. O olhar parecia enxergar longe ou não enxergar nada. Era a quietude.

     Enquanto passava meu olhar sobre o chão, observei seus sapatos.  Encardidos de terra vermelha, de tão gastos e sujos tinham um aspecto de singularidade. Como se fossem feitos somente para ele. Não me fizeram pensar em produções industriais de massa, mas sim o quanto aquele homem devia de ter andado, perambulado em busca de quê? De nada? De tudo?

     No instante em que pensava sobre suas andanças, outra sombra humana surgiu. Caminhava rumo ao nosso banco. Olhei para ele, e vi que não retribuía o olhar, apenas caminhava. Igualmente velho, era mais claro, porém, e suas roupas pareciam em melhor estado. Quase imberbe, os cabelos brancos eram curtos, mas começavam a cachear. Nos cumprimentou com um aceno de cabeça, sentou-se ao meu lado direito. Seu cheiro também não era agradável, mas também não me incomodou. Resolvi permanecer ali. Aquela pele clara ganhava em vermelho-laranja, marcas, rugas, chagas. Quanta luz já não havia se misturado a ela? O quanto somos diferentes da luz?
           
 Esse senhor estava usando paletó. O vento frio, ainda que em dia de sol forte, o justificava. Sem nada dizer, levantou o braço direito, e com a mão esquerda fuçava bolsos. Logo pude notar que, de seu velho paletó, a mão esquálida e cheia de veias colhia uma garrafinha com dois pequenos copos na boca. Trêmulo, encheu um dos copos e me olhou. Seus olhos azuis eram pálidos, como o céu em dias de estiagem. Eram bondosos tanto quanto tristes. Disse que não bebia, mas que agradecia. Então se esticou e ofereceu a bebida ao outro homem. Este aceitou, sem enunciar palavra, mas mediante gestual, agradeceu. Numa talagada, esvaziou o copo e o colocou na beirinha do banco. Do seu maço de cigarros, sacou um, e o ofereceu ao do paletó, o qual igualmente agradeceu a oferta, através de gesto. Ambos beberam, ambos fumaram.

Não ouvi uma sequer palavra deles dita. Não havia movimentos bruscos. Não havia medo, pressa, ansiedade, cólera. Se nada diziam, era porque nada precisava ser dito. Como se tudo já houvesse sido falado e nada resolvido. O que havia era a velhice, a dor, o martelar incessante do passado, os quais, pensei, tornavam-se menos insuportáveis em companhia. Nem precisava conversa, a simples presença era o que permitia comungar da solidão, e dizer o indizível, sem balbuciar palavra.

O relógio acusava três e vinte e cinco. Do banco tive de levantar. Nem cinco passos dei, olhei para trás e os velhos permaneciam nas mesmas posições. Fiz um aceno com a mão. Eles fizeram o gesto de sempre, aquele com a cabeça. Um bem-estar me acometeu quando a ternura por eles fez em mim uma viva sensação. O sentido das coisas não se diz, não há palavra. Sente-se.










7 comentários:

  1. Belíssimo, Alexandre!
    Além de muito bem escrito, é tocante ver em alguém jovem como vc sensibilidade para captar um momento como esse. Por outro lado, já que inequivocamente há um profundo quê de tristeza no contexto, fez-me um pouco pensar em "Esperando Godot". Vc já leu? Em caso negativo, leia!
    GK

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    1. Muito obrigado, Gugu! Escrever, como você bem sabe, é muito bom. Fica ainda melhor, porém, quando se é compreendido. Abraço, querido amigo!

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  2. os pássaros e as palmeiras cantam; os homens se calam, mas se olham... são duros, sofridos...vividos...Você, como Gugu disse, é um ser sensível, e sabe muito bem contar a cena...são tantos os detalhes que facilmente se compõe uma cena ..belo título ! as vezes, para sentir, é preciso parar e se sentar ! SENTE-SE ! parabéns

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    1. Que legal, Gabi! Você pescou o sentido do título! Fiquei muito contente com o seu comentário. Seja sempre muito bem vinda! Beijos!

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  3. Cada vez melhor! Belo texto, soa como poesia.

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  4. Lindíssimo o sentir no sentar. Lindíssimo.

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  5. Lindíssimo o sentir no sentar e o sentar no sentir. Lindíssimo.

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