domingo, 26 de maio de 2013

KELSEN, KANT E LUHMANN


Fiz algo que deveria ter feito há muito tempo. Em cima do guarda-roupas do meu quarto eu depositei, ao longo dos últimos ANOS, textos da Faculdade de Direito. Havia uma quantidade enorme de papéis, quase sempre fotocópias de livros, absolutamente empoeirados. Mais do que uma simples limpeza, o exercício de hoje, para mim, significou um reencontro com o passado, que eu estava, por preguiça, adiando.

A maior parte dos textos versava sobre Filosofia do Direito, os de outras matérias normalmente eu não adquiria. Tive uma estranha sensação ao folheá-los. Quase todos eu havia lido e, mesmo assim, não tinham qualquer significado para mim. Nas três ou quatro viagens que fiz para levá-los à reciclagem, refleti que os poucos anos que me distanciavam daquelas leituras me fizeram perceber o quão falsas, hipócritas, mentirosas, seja lá que nome se queira dar, as festejadas teorias lá presentes são.

Pense comigo, será que é razoável que se dê tanta notoriedade a um pensador cuja obra prima em Filosofia do Direito é dizer que a validade de uma regra deriva de outra que lhe confere igualmente validade? A teoria desse cara, chamada “Teoria Pura do Direito”, define o Direito como um complexo de normas, ligadas umas às outras por relação de validade, formando uma espécie de degrau, um escalonamento. Haveria um início, afinal se o pressuposto da teoria é uma validade dada por uma norma preexistente, chega o ponto de ter que ter um começo, um ponto de atribuição de validade, senão a coisa vai ao infinito. Foi aí que o cara tirou da cartola a “Norma Fundamental” (nesse momento imagino quantos estudantes, acadêmicos de direito, já não se referiram à famigerada, muitas vezes, quase nada pedantes, no original em alemão: “Grundnorme”). Se você perguntar a ele (referindo-se ao autor) ou a ela (referindo-se à Teoria) sobre a fonte de validade dessa norma fundamental, ele ou ela responderia, tranquilamente: ISSO NÃO É UM QUESTIONAMENTO ESTRITAMENTE JURÍDICO, LOGO, ESTÁ FORA DO ÂMBITO DA TEORIA PURA DO DIREITO. A NATUREZA DEONTOLÓGICA DA NORMA FUNDAMENTAL É DE UM CONSTRUCTO ABSTRATO NECESSÁRIO PARA CONFERIR COERÊNCIA À TEORIA. Bonito, não?

O que me provoca desânimo não é o fato de existir essa teoria, e que ela tenha alcançado sucesso. O que desanima é perceber que várias gerações de estudantes de direito aprendem isso na faculdade, como se essa definição fosse a mais exata acerca do que é o direito. Poucos anos de trabalho no tribunal de justiça, entre cartórios judiciais, gabinetes de desembargador e algumas leituras de textos de autores verdadeiramente filósofos (Marx, Sartre, Foucault, Zaffaroni) me fizeram perceber que a pobreza nisso tudo está em não se dar a mínima pra realidade de fora. A universidade cria um código, e o reproduz. Se lá fora o bicho tá pegando, tanto faz, o importante é a erudição, o que vale é citar em alemão “Grundnorme”.

Outro autor vinha com uma história de “Teoria dos Sistemas”. Deus do Céu, quantas vezes, em sala de aula, tinha de ouvir sobre isso. Apesar de toda a empolação, é algo muito simples. O cara parte da ideia de que a sociedade é a totalidade das comunicações. Note, ele não fala em seres humanos que peidam, fodem, dormem e cagam, ele fala em COMUNICAÇÃO. Bonito, não? Aí o gênio germânico imagina a sociedade como vários grupos, esferas de comunicação, entre as quais se destacam algumas por conta de seu tamanho em relação às outras. A Economia, a Política e o Direito são as principais esferas. As bolas se tocam. Política tocando economia dá o quê? Normas jurídicas (Leis) que disciplinam as relações de mercado, etc. Quando a bola da Política toca a do Direito, ocorre a Constituição (documento ao mesmo tempo político e jurídico). Por aí vai. Não é tão complicado, ou é?

A teoria não é ruim. Comparada com a primeira, é até mais bem elaborada. Mas, como eu disse no começo, onde estão as pessoas? Não é algo muito abstrato? Me assusta esse papo de sistema, até porque, ultimamente, até comentarista de futebol fala nisso. Já ouviu aquela conversa de “SISTEMA DEFENSIVO”? Eu sempre rio, quando não me revolto. Se o comentarista fala isso, eu mudo de canal. Lembra daquele verso do Capital (falo da banda, não se preocupe): “Se aparece o Francisco Cuoco, adeus televisão!”? É bem por aí! Será que o cara não percebe que são apenas uns pernas de pau tentando roubar uma bola, fazendo uma linha de impedimento meio torta, dizendo um para o outro “pode ir que eu fico”, “ eu dou o primeiro combate”. Não consigo imaginar que isso tenha qualquer relação com algo tão complexo como um sistema. Converse com os engenheiros eletrônicos, os doidos da informática, esses sim sabem o que é sistema. Ou mesmo com os biólogos e médicos e os peça para que eles expliquem um sistema tal com um sistema digestório, respiratório, excretor. Caso lembre de mais um vale este também.
           
Tinha um assistente de professor que pra dizer Luhmann, dizia LLLHHHHIIIUUUUMANN. Isso foi igualmente marcante.
           
Voltando para as teorias, o que falar do Kant? Lá na Faculdade de Direito ele é o cara! Os professores querem que a gente acredite nos imperativos categóricos. Piada, não acham? “Age no sentido de que sua conduta...” Parece que estou ouvindo um padre rezando sua missa. Nos cinco anos que estive na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco o filósofo de que mais ouvi falar foi ele. Nos passaram alguns textos, obviamente os mais ligados ao Direito. Não são maus. Ele, evidentemente, tem seu valor, foi um grande filósofo e tudo mais. O que questiono não é isso. O que é inacreditável é que filosoficamente a Faculdade de Direito da USP parou no Kant. Parou no século XVIII. Jamais ouvi falar em NIETZSCHE, muito menos em SARTRE. Forcei a barra no curso de Filosofia do Direito II e apresentei um seminário em que citava o Sartre e explicava alguns de seus pressupostos. Palavra, senti um interesse incomum por parte dos estudantes. Era notório que aquela garotada estava carente de discutir questões substanciais, temas reais, que exalam calor, que cheiram bem, ou fedem, ou que roubam nosso calor, mas que são capazes de nos envolver de verdade.

            Novamente tracei o caminho que me levou à ESTUPEFAÇÃO diante do ACADEMICISMO. Me lembrei que o ponto forte foi quando estudei, sozinho, é claro, sobre o existencialismo, e pude confrontar aquela filosofia com o que eu estava aprendendo na faculdade. Foi tiro e queda. Um golpe mortal no idealismo. A São Francisco perdia um estudante entusiasta, e ganhava um inimigo. Óbvio que ela não se importou.

            Passados dois anos que me formei, estou pensando em tentar o Mestrado. Olha que paradoxo. Tô metendo o pau, e agora venho com essa conversa. Deixa eu explicar. Estava falando no Kant, não é? Então, a definição por ele formulada sobre os direitos humanos é a que mais se utiliza nos cursos jurídicos. Pretendo questionar tal definição através de um olhar existencialista. Questionar esse papo de “NATUREZA HUMANA”, e defender que uma concepção dos direitos humanos sob a ótica do existencialismo é muito mais pertinente na medida em que não está descompassada com a realidade. Se o discurso sobre a fundamentação dos direitos humanos parte de uma premissa que leva em conta os homens de carne e osso, que sofrem, amam e apodrecem, a conversa fica mais sincera. Ultimamente, muitos professores de direitos humanos sequer tem ideia do que estou falando. É triste, mas é assim. Eles acham que um muçulmano deve engolir os imperativos kantianos. Que os homens têm uma mesma natureza. Que é possível estabelecer padrões comportamentais apriorísticos que inevitavelmente farão com que alcancemos uma paz perpétua. Tem que ter muita paciência, não acham? Eles não fazem ideia de que o que nos une enquanto humanos é padecermos de uma mesma condição, que pode ser chamada de condição humana. Todos nós, pigmeus, esquimós, cambojanos, aborígines, suecos, estamos fadados a sermos livres, e, querendo ou não, somos responsáveis por muito do que tá acontecendo. Ao invés dos formais imperativos categóricos, prefiro pensar como o Sartre, que quando você escolhe para si, está escolhendo para todos. Compreende? É com essa conversa que quero MESTRAR por lá. O problema será encontrar professor que tope me orientar, pois se quiserem que eu leia o Kelsen, o Luhmann e o Kant não vai rolar, seus textos foram urgentemente reciclados.







10 comentários:

  1. Dei algumas risadas lendo seu texto. Sou estudante de Direito e odiei todo o semestre que tive filosofia, não só pelos motivos que falou, mas por muitas outras coisas. Meu professor só sabia falar sobre o mito da caverna... :/
    Uma professora minha, acredite se quiser, fala VADINECUM, é sério, ela fala assim. Na primeira vez que escutei achei que ela havia se confundido ou que eu havia escutado errado, mas ela continuou falando dessa forma durante o ano todo. Triste, não? kkkkk

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    1. Oi, Camila, seja bem vinda!
      VADINECUM é triste, hein? Deve significar, traduzido do latim, "venha nêgo", um latim meio soteropolitano,rs.

      Um beijo!
      Até!

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  2. Às vezes tudo isso me soa como tentar pôr ordem em algo inexoravelmente fadado ao caos.
    GK

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  3. Exatamente. Se a coisa toda fosse encarada da maneira como realmente é, já seria um bom começo. Pelo menos assim penso eu.

    Abraço, Guga!

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  4. Maravilhoso o texto. Mesmo. Que venha o mestrado.

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  5. Penso que Kelsen, Kant e tantos outros nomes merecem o reconhecimento pelo óbvio, pela tentativa de traduzir o que, por si mesmo, é essencialmente complexo, cheio de nós mesmos. Essência que faz qualquer Kant ou Sartre se tornarem o mesmo, bichos humanos não recicláveis, que cagam, fodem, amam, morrem, fedem, que existem, alem da norma, do sistema.

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    1. Digamos que é um pouco de querer pular na própria sombra...ainda que não consigamos, faz a gente se mexer, sair da inércia, rs! Obrigado pelo comentário!

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  6. Realmente a São Francisco continua essa punhetagem de repetir Kelsen e Luhmann, este último o Deus do Campilongo e do Marcelo Neves (que foi pra UnB). E agora com o Ronaldo Porto Macedo Jr., como titular, os alunos terão uma overdose de Dworkin, Finis e outros estudiosos americanos.
    A propósito, que, é esse monitor que fala LLLHHHHIIIUUUUMANN? hahaha
    Lembro de um monitor que endeusava o Habermas.

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  7. Alexandre, tudo bem? Curso o 4º semestre da FDUSP.

    Tenho que concordar com sua crítica. Eu me confesso interessado em Luhmann e em Kant, mas é preciso limitar a teoria daqueles a um horizonte europeu/anglo-saxônico, e deste a uma realidade ocidental. De fato o existencialismo (como protestante prefiro Kierkegaard) pode dar aportes individualistas melhores que essa generalização. Espero que tenha conseguido ou esteja pra entrar no mestrado, faça essa leitura existencialista dos direitos humanos, e disponibilize aqui! Abraço

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